Tuesday, November 20, 2018

Luta Amada

Um retrato na cômoda emoldura uma presença incorpórea. Há quem se sinta ofendido ao entrar na sala. Tantas décadas depois, ainda insistindo nisso. O pai morreu desgostoso, sem concordar com a ideologia do filho até o fim, sem concordar com a sua ausência espontânea e, sobretudo, sem concordar com sua ausência forçada. Jamais admitida por quem a provocou. Todos sabem quem foi, às vezes o responsável aparece no noticiário, com a cara de quem dormiu gostoso ao roubar as horas de sono alheias. Hoje foi a vez da mãe também se ir, sem nunca saber o que aconteceu com aquele filho idealista do qual ela se orgulhava, mesmo sem compreender o que exatamente todos aqueles discursos inflamados diziam. Até o último dia pressionou para que a verdade viesse à tona. O retrato será enterrado com ela.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Este conto foi publicado aqui no blog em 28 de março de 2012, como parte da blogagem coletiva #DesarquivandoBr. Vi meu amigo Tadeu Rodrigues, romancista e poeta, falando a respeito no Twitter e quis participar, pois o tema dos desaparecidos políticos me comove. Achei por bem republicá-lo no Jornal da Cidade agora, devido ao recrudescimento da extrema-direita no país, para que um assunto desta gravidade jamais seja esquecido ou minimizado. O negacionismo, seja do Holocausto, seja de qualquer outra mortandade, nunca pode ser tolerado. Revisei levemente o breve conto e o jornal o publicou no feriado do dia 15 de novembro de 2018. 
O título é Luta Amada mesmo e não Armada, pois refere-se aos familiares dos desaparecidos e sua busca pelos seus entes queridos, e não à luta armada - nem todas as pessoas assassinadas pela ditadura, desaparecidas ou não, pegaram em armas para resistir ao golpe militar. Recomendo a leitura do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964, publicado nos anos noventa pelas imprensas oficiais de Pernambuco e São Paulo, para se saber mais sobre como foi a vida dessas pessoas. Há muito mais obras a respeito. Livros como Olho por Olho (os livros secretos da ditadura), de Lucas Figueiredo, e Mulheres que Foram à Luta Armada, de Luiz Maklouf Carvalho, relatam igualmente crimes tanto da extrema-direita, a maioria usando o aparato estatal, como da extrema-esquerda, mas os pesquisam e os contextualizam; qualquer comentário aqui que use a teoria dos dois demônios (a de que os dois lados eram iguais) será sumariamente apagado, pois também é intolerável. 
Além disso, como costuma constar das peças do Ministério Público Federal contra torturadores e assassinos dos aparelhos repressivos, os crimes da ditadura civil-militar foram "cometidos no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência". A repressão da ditadura enterrou seus mortos, nem todo familiar dos esquerdistas teve esse direito, e relembro: parte dos mortos e desaparecidos estava envolvida na resistência pacífica à tirania de então, não tendo cometido qualquer crime.
 
Luta Amada na versão impressa do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG), ao fim da página 10 e com o título errôneo.

Wednesday, November 07, 2018

Sobre o que falávamos mesmo?

Bolinha de gude.
Ele ainda se apegava a essa lembrança, o seu Rosebud. Ela, alheia ao desconhecido ao lado, lia mensagens no celular e ria de memes. Lembrou-se de quando leu uma matéria a respeito de memética, sobre como era um assunto sério e lhe pareceu tão interessante e cheio de possibilidades. Agora era só uma piada, como a vida dela, obsoleta.
No ponto de ônibus havia mais seis ou sete pessoas, espremidas, aguardando enquanto a chuva apertava. A garganta dele apertou também, lembrando-se do futuro que acalentava como se fosse um bebê sorridente, que lhe balbuciava promessas em palavras ainda mal articuladas, mas plenamente reconhecíveis.

Quando o ônibus chegou, esbarraram-se. Ele ofereceu-lhe o caminho com a mão; ela agradeceu com um leve aceno de cabeça, desacompanhado de qualquer esboço de sorriso. A meia dúzia esperando atrás e o motorista jamais saberão que eles namoraram por um ano e meio. A história já os apagou e, portanto, não abarca mais a estória deles, essa palavra arcaica, da qual ela jamais gostou e na qual ele ainda se segura como um destroço à beira do redemoinho do presente, esperando ser tragado para o passado abissal como um anacronismo do qual alguém ainda se lembre com algum saudosismo.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor
Este conto foi publicado no fim da página dez no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em dois de novembro de 2018, abaixo de artigos do professor Hugo Pontes sobre o aniversário da cidade e do músico Aquiles Rique Reis (do MPB-4) sobre o sambista Monarco. Já havia publicado-o aqui no blog em 15 de março de 2015. Não o reescrevi, ao relê-lo não senti a necessidade de nenhuma revisão, tudo o que queria expressar sobre um relacionamento intenso que resulta em nada mais do que em ressentimento está dito.