Wednesday, November 07, 2018

Sobre o que falávamos mesmo?

Bolinha de gude.
Ele ainda se apegava a essa lembrança, o seu Rosebud. Ela, alheia ao desconhecido ao lado, lia mensagens no celular e ria de memes. Lembrou-se de quando leu uma matéria a respeito de memética, sobre como era um assunto sério e lhe pareceu tão interessante e cheio de possibilidades. Agora era só uma piada, como a vida dela, obsoleta.
No ponto de ônibus havia mais seis ou sete pessoas, espremidas, aguardando enquanto a chuva apertava. A garganta dele apertou também, lembrando-se do futuro que acalentava como se fosse um bebê sorridente, que lhe balbuciava promessas em palavras ainda mal articuladas, mas plenamente reconhecíveis.

Quando o ônibus chegou, esbarraram-se. Ele ofereceu-lhe o caminho com a mão; ela agradeceu com um leve aceno de cabeça, desacompanhado de qualquer esboço de sorriso. A meia dúzia esperando atrás e o motorista jamais saberão que eles namoraram por um ano e meio. A história já os apagou e, portanto, não abarca mais a estória deles, essa palavra arcaica, da qual ela jamais gostou e na qual ele ainda se segura como um destroço à beira do redemoinho do presente, esperando ser tragado para o passado abissal como um anacronismo do qual alguém ainda se lembre com algum saudosismo.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor
Este conto foi publicado no fim da página dez no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em dois de novembro de 2018, abaixo de artigos do professor Hugo Pontes sobre o aniversário da cidade e do músico Aquiles Rique Reis (do MPB-4) sobre o sambista Monarco. Já havia publicado-o aqui no blog em 15 de março de 2015. Não o reescrevi, ao relê-lo não senti a necessidade de nenhuma revisão, tudo o que queria expressar sobre um relacionamento intenso que resulta em nada mais do que em ressentimento está dito. 

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