Wednesday, October 13, 2021

Gerô e Cris

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 09/10/2021. Eu o escrevi no dia sete de outubro e por coincidência no dia seguinte viralizou nas redes sociais um vídeo de uma mesa de debate sobre racismo na qual o Demétrio Magnoli censurou a manifestação de negros e permitiu que apenas brancos falassem. O conto não foi escrito tendo em mente o Magnoli, mas sim em sujeitos que são muito parecidas com ele. 

Coça a papada com a mão macilenta em frente ao espelho. Encara-se, incomodado. O fixo toca. Ninguém liga mais nesse número. Estranha, mas atende.

- Fala, Gerô!

- Cris! Há quanto tempo! Que surpresa boa. O que você conta de bom?

- Ah, nada de especial. Pandemia, tudo parado. Estou escrevendo bastante, ao menos. E você?

- Quem me dera... Jornalismo desconcentra. Escrevo bastante também, mas só para imprensa. Mas tudo bem, ao menos nunca saio de casa, estou fazendo um isolamento rigoroso.

- Eu também! Estou acompanhando tudo, rapaz. Assinei a revista nova, tenho lido sua coluna online. Impecável, como sempre.

- Muito obrigado, meu caro!

- Precisa voltar para a Literatura, Gerô! São poucos que ainda a honram. Se existisse essa besteira de lugar de fala, esse é o seu.

- Ah, estou tão desanimado... Foi um fiasco esse último. Mais um. Eu sei, você sabe.

-  Não é assim também...

- Foi. Nem o esquema da revista deu certo. E deu tão certo pro Marião... Ainda bem que saí de lá.

- É, nem sua crítica ao meu livro fez ele bombar. Mas não é culpa sua. A revista que já estava em decadência, não é como antes.

- Sim, mas ao menos você vende sempre. O incrível é que a sua crítica ao meu, que eu tinha tanta certeza que faria um barulho, não atraiu ninguém. Nada. Queria ganhar meus trocados.

- O meio cultural daqui que não está preparado pra sua sofisticação, Gerô. Está vendo que horror essa tentativa de transformar a Carolina Maria de Jesus em escritora? Em escritora de respeito! Esse país não tem jeito. É uma terra de parvos.

- E esse preto que ganhou o Nobel agora? Nunca ouvi falar. Não suporto mais o politicamente correto, Cris. Um dia ainda vão nos proibir de ler os clássicos apenas porque são europeus.

- Nem me fale. Mas, deixa eu te falar, faz tempo que a gente não conversa e fiquei preocupado com algo... Aquele povo festeiro percebeu nosso esquema de nos elogiar na revista? Deu certo esperar umas semanas para que não notassem? Você sabe, não tenho redes sociais.

- Passou batido, fica tranquilo! Mas não sei se foi porque armamos direito. É que eles inflavam a circulação, distribuem vários exemplares gratuitamente pelo país todo. Ninguém mais lê a revista; você está certo, entrou em declínio.

- É, por isso não vendemos mais. Mas e agora, daria certo fazer outro esquema pra promover meu livro que estou terminando aqui?

- Não, não. Ficam em cima. Não me deixariam escrever a respeito.

- Ah, pena.

-Bem, sendo bem Poliana, ninguém parece ter percebido que foi tudo combinado. Às vezes foi melhor ter passado batido. Se fosse naquela época que tentei esmagar a petistada nas letras... Teriam caído matando.

- Era o meu temor. Imagina se alguém percebesse? Iam fazer aqueles textos nos estereotipando como elitistas, racistas, pedantes, esnobes e sabe-se lá mais que outro delírio.

- Pois é, imagina só! Que falta de imaginação. Esse povo não sabe de nada. São sempre esses personagens caricatos, planos.

- Não sabem como valorizamos o diálogo democrático.

- E sofisticado.

- Pois é. Bem, tenho que desligar, o alarme do SUV disparou aqui. Abraço!

- Vai lá! Vou terminar de bebericar meu Chateau Petrus. Abraço!

 

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor

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