Monday, August 22, 2022

Memória afetiva e leitura

Este texto, um misto de crônica, ensaio, resenha e memórias, foi publicado na página 7 da edição 7821 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 20 de agosto de 2022. É uma extrapolação das minhas breves impressões sobre o Auto da Compadecida, as quais escrevi para o Goodreads logo depois de ler o livro para o meu pai, pouco mais de dois meses antes da morte dele em 2019. 

Chegou a hora de reler Ariano Suassuna. Ao menos para mim. Ao menos o Auto da Compadecida. Ao menos. Ao lê-lo, li de uma vez só. Na verdade, li-o em voz alta, para meu pai, que enxergava com dificuldade após um AVC – ao menos ele não teve outras sequelas e teve alguma qualidade de vida até falecer, em 2019. Voltando à obra-prima de Suassuna, contando o tempo de leitura do prefácio, que foi lido depois, também para meu pai, não levou mais do que três horas. Já tínhamos assistido ao filme dirigido pelo Guel Arraes numa reprise há uns dez anos, pois à época do lançamento passou batido para mim; acho que meus familiares já tinham visto até antes, quando foi exibido em forma de minissérie. O texto é muito prazeroso de ser lido em voz alta, afinal foi concebido para o teatro. O que chamou minha atenção, em primeiro lugar, foram as referências das histórias populares que Suassuna cita no preâmbulo; apesar de ele ser cristão e conservador, ele não tem pejo em usar passagens escatológicas e que me parecem que bem blasfemas, pois também abordam traição e sexo. O ótimo prefácio da edição que li, de Henrique Oscar, traça as origens disto em textos medievais, nas quais Nossa Senhora também tem papel fundamental na salvação de almas. Ou seja, pode até escandalizar fundamentalistas, mas é uma obra fundada em narrativas católicas populares que refletem a profunda religiosidade do autor. Outro aspecto que me chamou a atenção é que no livro João Grilo é mais violento e maquiavélico do que me lembro dele ser no filme; parece-me bem normal isto ter sido atenuado no roteiro, pois dificultaria a identificação do público com o personagem. De qualquer forma, é um livro divertidíssimo, rápido de ser lido e ao mesmo tempo não é uma leitura superficial; pelo contrário, também há reflexões assertivas e precisas sobre racismo e gênero, uma surpresa enorme vinda de um autor assumidamente conservador. Nunca imaginaria pegar todos esses detalhes numa leitura em voz alta: eu gosto de ler quietamente, nunca sequer balbucio uma palavra que seja. E eu precisava esperar para reler. A saudade do meu pai vai aflorar, com certeza. Talvez seja o primeiro livro que eu estranhe ler da forma como sempre li. Recordo-me de um texto de um amigo, o professor e escritor Fábio Gonçalves de Carvalho, no qual ele comentava que alguns livros marcam tanto pelo texto quanto pelas circunstâncias em que foram lidos. No caso dele, ele citava que leu O Exorcista de madrugada e num hospital. O meu caso é mais terno.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, revisor e escritor.


Ariano Suassuna em 1971. Foto de domínio público. 



4 comments:

Anonymous said...

Você consegue atrair para que se faça a leitura. Assisti o filme várias vezes. E li muita crônica do Ariano na Folha de S. Paulo. Abraço de morador de Carmo do Rio Claro, região do lago de Furnas. Sou primo do Nilton Junqueira, de cujo perfil no "Feice" vim parar aqui.

Daniel Souza Luz said...

Bacana, muito obrigado pela leitura!

Jornalismo Cidadão Digital said...

Assisti à série e depois ao filme (que foi uma versão menor da série) e só depois tive acesso ao texto também. Acho uma obra formidável em todas suas versões. Cara, sua memória é fabulosa, me faz lembrar detalhes que haviam se perdido na minha mente... hehehe

Daniel Souza Luz said...

Aê, muito obrigado pela leitura também!