Sunday, November 01, 2015

DNA, uma crônica no wave onírica

Para Ikue Mori, Arto Lindsay, Robin Crutchfield e meus irmãos Fernanda e Eurico

Sempre soube que eram sonhos, eram fantásticos e eram recorrentes. Poderiam até ser realidade, ao menos no começo os percebia como reais enquanto eles aconteciam, pois era criancinha quando eles começaram e eu ficava um pouco confuso por o cenário sempre ser o apartamento onde vivia e no início sempre era de noite neles.
Foram proto-sonhos lúcidos, portanto; meu primeiro sonho lúcido, no entanto, foi uns anos depois destes preâmbulos fantásticos, mas ainda era criança quando aconteceu: estava no pátio do Colégio Canadá, onde fiz o jardim da infância, e uma freira me mandou parar de brincar e voltar para a sala. Estranhei, pois em primeiro lugar não parecia tanto assim o Colégio Canadá, que não existe mais (mas ainda existia, à época do sonho). Em segundo lugar, embora eu ficasse louco para voltar para casa e assistir desenhos animados, na verdade eu gostava desta escola, justamente porque era um ambiente alegre e laico. Não havia aulas de religião e muito menos freiras. Então, no meio do sonho, tomei CONSCIÊNCIA DE QUE ESTAVA SONHANDO.
Meu primeiro sonho lúcido foi libertador, uma experiência inesquecível para uma criança. Não fiquei apavorado, não tive paralisia do sono e não sabia que existia o termo “sonho lúcido”. Só fiquei muito feliz, tanto como quando estudava no Colégio Canadá. Na época deste sonho já estudava em outra escola, hoje centenária, num ambiente mais repressor.
Como sabia que estava sonhando, interpelei a freira e disse-lhe “Isto é um sonho. Você não manda em mim”. Era uma senhora, ela fez uma cara de decepcionada... Ainda virei para ela mais uma vez e disse “Você não existe, vou continuar brincando”. E fiquei na caixa de areia, com um carrinho de plástico vermelho na mão. Acordei pouco depois, mas feliz. Durou pouco essa mobilidade onírica consciente, mas foi marcante. Décadas depois, vi uma cena semelhante no filme Vanilla Sky, do diretor Cameron Crowe.
Saudades desse Colégio Canadá. Lembro-me que o diretor se chamava Sérgio e ele dava aulas de judô ou karatê – alguma arte marcial; só lembro que não era kung fu – para nós. Mas era algo muito lúdico, todos tínhamos seis anos ou menos. Eu tinha sentimentos muito divididos sobre a escola: eu detestava não poder assistir desenhos animados e invejava meu irmão mais novo, Eurico, que ficava em casa assistindo-os. Por outro lado, ele queria demais ir à escola comigo e eu não entendia isso. Mas quando chegava ao colégio era um ambiente tão bom e aprendia tantas coisas tão alegremente que esquecia dos desenhos do Zero (sim, além do gibi, existia um desenho animado), do Johnny Quest, Carangos e Motocas, Speed Racer e tantos outros que adorava.
Na hora de ir embora, pela qual eu tanto ansiava antes, para poder ver TV com meu irmão (minha irmã Fernanda ainda não havia nascido), no entanto, eu ficava apavorado. É que havia uma oficina mecânica na avenida João Pinheiro, num local onde hoje há uma padaria, e eu ficava apavorado ao ver as faíscas de quando eles soldavam algo. Eu deveria achar que algo ia explodir ou que estavam montando um robô assassino gigante ali, sei lá. Minha experiência com a escola era uma montanha-russa de emoções conflitantes. O Colégio Canadá, no fim, foi parar perto da casa onde morei nos anos noventa e morreu quieto, eu acho, na mão de outros proprietários, pelo o que sei. Um pedacinho que se perdeu da história de Poços de Caldas.
Toda esta divagação e ainda não falei dos sonhos fantásticos que tinha desde criancinha. Não há como descrever a maravilha visual que eram estes sonhos, simplesmente não há palavras para isto. Mas o que sempre acontecia é que olhava pela janela do apartamento onde morei quando era criança e estava tudo certo com a paisagem: o quintal do prédio, com uma casinha de utensílios para o jardineiro e vários varais, alguns com roupa. Em frente, os fundos de uma casa. Mas o céu sempre era diferente: às vezes, eu via o núcleo da Via Láctea. A Lua geralmente não aparecia, mas vários planetas apareciam tendo o mesmo tamanho dela ou maiores, como se estivessem muito mais próximos. Júpiter, Marte e especialmente Saturno eram presenças constantes. Em vários desses sonhos, quando eu abria a cortina, havia outros planetas, desconhecidos e maravilhosos, por perto. Não era nada como Melancolia, não era ameaçador – era deslumbrante. Discos voadores eventualmente cruzavam o céu. Não era sempre que apareciam e raramente eram ameaçadores. Às vezes o tráfego de OVNIs era intenso. Nos únicos casos em que me senti ameaçado por eles, eles sempre vinham sobrevoando de trás do teto de uma casa cinza cuja lateral ficava à esquerda. Estas casas, assim como o prédio, existem até hoje no mundo real. Exatamente por isso, como disse minha irmã dias atrás, o prédio se parece com um sonho.
O curioso a respeito dos discos voadores que sempre surgiam sinistramente por detrás da casa cinza, tendo ao fundo as montanhas, é que muitas vezes eles surgiam de dia e este virava noite. Mas eles nunca pousaram ou destruíram nada. Eventualmente viravam teco-tecos. Ou seja, nunca foram perigosos.
Embora estes sonhos com o céu transformado tenham começado em tenra idade, continuei tendo-os mesmo depois que mudei do prédio. Foram inúmeros, sempre fascinantes, por décadas, do fim dos anos setenta até neste século. Tive-os até recentemente.
O prédio onde cresci. Tirei a foto em 2012.
O último foi há um par de anos. Sonhei que a banda no wave DNA estava tocando no quintal do prédio. Poderia ter descido lá o Mars, outra banda da mesma cena e com nome de planeta, mas alguma engrenagem onírica escolheu o DNA. Dois integrantes, Arto Lindsay e Ikue Mori, estavam lá, tocando muito baixo para uma banda tão barulhenta e experimental, ao lado de um terceiro integrante indistinto, como se fosse o fantasma do tecladista Robin Crutchfield. Corri para a janela para vê-los, não queria perder um segundo da apresentação descendo a escada até lá. Afinal, se o DNA estava tocando no quintal do meu prédio sem qualquer motivo, se eu descesse até lá talvez eles não estivessem mais lá quando eu chegasse. Apenas algumas crianças estavam vendo-os. Então notei que o céu era igual ao dos meus sonhos recorrentes. Repentinamente, era noite, Saturno estava enorme no céu e discos voadores nos sobrevoavam. Foi a última vez que sonhei com este céu fantástico, que não aparece em nenhuma outra paisagem onírica – ele ocorre apenas no quintal do meu predinho da infância. Sempre que acontece, a sensação remete ao título de uma música de outra banda no wave, o Teenage Jesus and the Jerks: eu acordei sonhando.

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