Monday, December 26, 2022

O caso das bicicletas

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7906 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 24 de dezembro de 2022. Eu mesmo revisei o texto, portanto alguns errinhos podem ter passado. Em relação à versão publicada ao jornal, corrigi uma palavra que digitei de forma errada (correligionário, que lá saiu como "correlegioniários"). 

No início dos anos 1980 meu pai costumava levar a mim e meus irmãos para andarmos de bicicleta no aeroporto de Poços. No calçamento de pedras entre os jardins era tolerado que nós andássemos nas nossas bicicletinhas com rodinhas. Meu irmão aprendeu a andar sem o apoio das rodas laterais antes de mim; eu aprendi semanas depois, irritado com as provocações dos adultos sem noção que também iam passear por ali. Essas bicicletinhas ficaram pequenas demais para nós uns anos depois. O BMX já era um esporte mais popular, víamos em filmes como ET: O Extraterrestre, pegávamos emprestadas as Caloi Light de alguns amigos para darmos umas voltinhas e queríamos nossas bikes no mesmo estilo para darmos nossos pulos por aí também. Ah, antes que me esqueça: naquelas idas ao aeroporto uma vez meu pai deu carona a um velhinho que desembarcou lá. Eu lembro que ele era simpático e careca. Anos depois meu pai disse que era o Tancredo Neves e que ele ficou com pena do Tancredo chegar lá e não haver nenhum correligionário para recebê-lo. Minha mãe não se lembra disso, nunca conversei a respeito com meu irmão, acho que minha irmã não era nascida e eu era criancinha demais para saber quem ele era ou guardar a fisionomia. Isso deve ter sido em 1980 ou 1981. Depois dessa breve digressão, vamos ao que interessa: pedimos nossas bicicletas de BMX para o Papai Noel. Há fotos de nós andando nessas bikes, Monarks de pneus amarelos, aliás muito pesadas quando comparadas com às Caloi Light, em 1985. Isso significa que foram presenteadas no Natal de 1984. Eu e meu irmão estávamos muito ansiosos para ganhá-las. Não queríamos dormir no horário que minha mãe e meu pai estipularam. Meu pai tentou nos despistar. Imagino que as bicicletas estivessem no quintal do predinho onde morávamos ou algo assim. Ou seja, havia o risco de serem furtadas, provavelmente por isso ele se apressou. Não vimos ele entrando com as bicicletas, mas ouvimos o barulho da porta e de movimentação da sala. Não bastasse isso, o vimos vindo pelo corredor. Foi aí que percebemos, eu e meu irmão, que Papai Noel não existia. Comentamos sobre isso na manhã seguinte. Fiquei me achando muito adulto. Tinha 10 anos. As crianças de hoje não devem ser tão ingênuas.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor

Esta é a minha bicicleta atual. Tenho há uns quinze anos e não pedalo nela há muito tempo. 


Monday, December 19, 2022

Um mineiro em Copacabana

Este artigo, um híbrido de crônica e resenha, foi publicado na página 7 da edição 7901 do Jornal da Cidade (de Minas Gerais/MG) em 17 de dezembro de 2022. Trata-se de mais uma tentativa de recuperar a memória da obra de Mattioli, para que não caia num limbo. Eu mesmo revisei o texto, ou seja, o olhar já cansado pode ter deixado passar uns errinhos. 

Nestas semanas tenho escrito sobre a obra do advogado Marcos Mattioli e sua turma, pois completaram-se dois anos de seu falecimento no fim de novembro. O que me assombra é que muita gente aqui lança livros, a imprensa divulga os lançamentos, mas quem os lê depois? Mais do que isso: quem reflete sobre o que leu e registra isso? Poucos traços da existência dos autores permanecem acessíveis. Em uma busca detalhada na internet não encontrei nenhuma referência ao livro Um Mineiro em Copacabana, do Mattioli. Meu pai tinha um exemplar deste livro, com uma dedicatória datada de 29 de maio de 2016. Seria a provável data de lançamento? O prefácio, da lavra de Antônio Luiz Fontela, é de dois de julho de 2002. Depois pergunto para Fontela se o lançamento do livro demorou mais de uma década, se é uma reedição ou se Mattioli presentou meu pai com o livro muitos anos depois. Devia ter começado por esse, teria uma melhor impressão de Mattioli como escritor – embora ele dissesse que não o era. Talvez tenha sido uma defesa, consciente, para a escrita desleixada, apressada (há uma profusão de conectivos, sem pontuação) e desorganizada. Não é por isso que ele deixava de ser escritor. Já salta aos olhos a capa, belamente ilustrada por Cida Costa Laier, também já falecida. É um prenúncio de um opúsculo, como bem define Fontela, mais refinado. Este livro não é tão problemático quanto Causos e Contos, não há tantos erros de português/digitação, mas também, como sempre, falta revisão e sobra incorreção política. A narrativa é mais caprichada, portanto é uma leitura mais prazerosa. Fui injusto ao dizer que Mattioli não era um narrador habilidoso ao comentar o livro anterior. Aqui ele narra suas memórias com muito mais eficácia, até porque não divide as histórias em vários pedacinhos. Não é um primor, pois os tempos verbais causam confusão ao misturar presente e passado. De qualquer forma, é possível entender perfeitamente seu começo de vida profissional e amorosa em Poços, sua ida para o Rio de Janeiro, as aventuras na capital carioca e arredores, suas motivações e seu retorno. Especialmente pungente é o relato do falecimento de sua mãe, Ophélia, em 2001. E há muitas outras passagens nas quais ele soube contar uma boa história, como a saborosa desventura da Kombi quebrada e dos caroneiros. Em contrapartida, há também um mal que acomete muitas obras de escritores poços-caldenses: a mania de fazer listas. Não se desenvolve a história dessas pessoas, não sabemos como elas foram em carne e osso. É um mero registro histórico que se caracteriza pela incompletude, ao qual é preciso recorrer à memória alheia de quem ainda está vivo ou fazer inferências. Por exemplo, meu pai é citado numa dessas listas de nomes, então agora sei que a casa na qual se reunia a “turma do Bortolan” da qual ele fazia parte chama-se ou chamava-se Recanto das Jaboticabeiras. Como muitas obras de autores interioranos lançadas apenas localmente, há logos de patrocinadores ao fim e informações dispensáveis que parecem tiradas de guias turísticos. O diferencial é que o final conta com uma espécie de coda na qual letras de músicas puxam lembranças de encontros com amigos ou o testemunho apresentações ao vivo de músicos do quilate de Tom Jobim. E que pena que o livro que Mattioli ganhou de JK, com um autógrafo, tenha sido surrupiado.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor








Monday, December 12, 2022

A turma do Bortolan na Cascatinha

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7896 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 10 de dezembro de 2022. O texto não passou por revisão, portanto, pode ter alguns erros. 

Na semana passada escrevi sobre um dos livros do advogado Marcos Mattioli. Chamado Causos e Contos, nele descobri que meu pai fazia parte da “turma do Bortolan”, assim denominada porque os amigos de Mattioli costumavam reunir-se para churrascos numa casa dele naquele bairro. Nunca soube disso, deve ter sido quando meu pai tinha boa saúde e ele mesmo ia nessas festas. Depois que ele adoeceu no final de 2009 era eu quem o levava e geralmente buscava, mas todas as vezes na casa do Mattioli na rua Corrêa Netto. Como expliquei na crônica anterior, sempre me recusei a participar dessas festas quando fui convidado. Não sou chegado em bebedeiras. Um dia, no entanto, fui parar em uma reunião da turma, bem mais velha do que eu. Meu pai estava ficando turrão e teimava em beber. Teve dois AVCs; o primeiro sem sequelas, o segundo prejudicando consideravelmente sua visão. Ele não podia com álcool, os médicos avisavam constantemente. Mas tudo bem, estou ficando velho e provavelmente teimoso também. Nem devo perceber. Enfim, no finzinho de setembro de 2013, num sábado à tarde, meu pai iria numa das festinhas da turma, mas na Cascatinha. Minha mãe, preocupada, pediu que o acompanhasse, para que ficasse de olho nele para que não bebesse. Eu planejava ficar em casa, tranquilo, naquele dia, lendo um romance – salvo engano, da Anaïs Nin. Fui, mas fui contrariado. Chegando lá, numa residência com uma escadaria considerável, próxima ao bairro Santa Rita, não me recordo mais de quem, fui apresentado ao pessoal. Lendo o livro de Mattioli, recordo-me de alguns nomes: Colobardini (um ex-promotor público, conhecido como Colô), o dentista Norberto Danza, o ex-prefeito Sebastião Pinheiro Chagas, Bob e Rebite. Havia muitos outros presentes, cujos nomes não guardei. Procuraram me deixar à vontade, mas eu estava preocupado. Não conseguia relaxar: não podia dar bobeira, pois meu pai daria alguma desculpa para beber. Pinheiro Chagas veio conversar comigo; disse que eu era muito sério e que eu lembrava muito o Carlos Drummond de Andrade, que ele conheceu pessoalmente. Não fisicamente, mas no jeito de ser. Achei que era elogio, tomo até hoje como se fosse, mas não era: ele me disse que eu era sério demais, como Drummond era, mas que isso não vale a pena. “O que realmente importa na vida é rir”, asseverou, sério. Perguntou se eu gostava de literatura, pois falei um pouco sobre o Drummond quando ele tocou no seu nome, e recitou para mim um de seus sonetos quando confirmei. Voltou a insistir para que eu risse da vida e foi sentar-se à mesa para falar bobagem e dar risadas. Até parece que eu ficaria de bom humor: no livro de Mattioli, Pinheiro Chagas escreveu que gostava de pagar cerveja para várias pessoas, uma delas meu pai. Eu não sabia disso, mas dava para intuir e mantive a vigília. Creio que notaram minha encanação e um dos amigos do meu pai, de quem me lembro bem, mas de cujo nome não me recordo, assegurou que não deixariam que ele bebesse. Fui chamado à cozinha para pegar um pouco de arroz, vinagrete e pão para comer a carne que estava ficando pronta. Lá conversei por alguns minutos com uma moça, creio que a anfitriã. Também não me lembro mais do nome dela, peço perdão. Ela me perguntou se eu conheci o “gordinho da Cibel”, o que sempre andava de moto. Sim, o conheci. E, também, esqueci-me do nome. Ela me contou que era a mãe dele. Ele morreu num acidente. Eu tinha medo dele na escola, parecia ser um bully. Nunca me fez nada, no entanto, e, curiosamente, conversei brevemente e amigavelmente com ele num churrasco poucos meses antes do acidente. Acho que disse isso para ela. É curioso como inimigos imaginários da infância vão deixando de sê-lo. De volta à mesa, flagrei uma cena curiosa: Norberto Danza estava dormindo sentado. Contaram uma piada ou causo que fez os presentes darem gargalhadas. Ele acordou com a risadaria e caiu na risada também, sem fazer ideia do que foi dito. De pronto, pediram pra ele fazer um truque – ele também era mágico, além de escritor. Inadvertidamente, já senil, atrapalhou-se e revelou como era feita a mágica. Foi aplaudido, riu mais ainda. Então relaxei e aproveitei a festa. Quanto ao livro da Anaïs Nin, comecei a lê-lo de novo anos depois e até hoje não o concluí. Não era pra ser.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor


Tirei esta foto em 20/05/2017, no aniversário do dentista Norberto Danza. Portanto, não foi bem um encontro da turma do Bortolan, mas sim um evento mais família. Não foi na Cascatinha e nem no Bortolan, mas sim na Fungotac, no centro de Poços de Caldas. Esta foto estava inédita até ser publicada junto com esta crônica no Jornal da Cidade. Da esquerda para direita: Daniel da Luz (meu pai), Maria José (enfermeira e cuidadora do ex-prefeito Pinheiro Chagas), Sebastião Pinheiro Chagas e, ao fundo, de vermelho, Marcos Mattioli. Não sei quem são as duas moças conversando ao fundo. 


Monday, December 05, 2022

Um causo sobre um livro de causos

Este artigo (uma mistura de resenha, memórias, crônica e causo) foi publicado na página 11 da edição 7891 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Depois da publicação soube, por intermédio de Luiz Carmo, que Armando Mattioli, irmão de Marcos Mattioli, faleceu no dia primeiro de dezembro de 2022. Foi justo quando li Causos e Contos, pois fazia exatamente três anos que meu pai havia falecido. Luiz é primo dos Mattiolis, meus sentimentos à família. Em relação ao texto publicado no jornal, fiz quatro pequenas correções aqui para eliminar repetição de palavras. 

Nesta semana, no dia 28 de novembro, fez dois anos do falecimento do advogado Marcos Mattioli. Ele era muito amigo do meu pai, falecido pouco menos de um ano antes, em dezembro de 2019. Lembro-me de Mattioli no velório dele, bastante compungido. Meu pai tinha a liberdade de imitar o jeito peculiar como Mattioli falava na cara dele, sem constrangimentos, às risadas; eram grandes camaradas mesmo. 

Da minha parte, achava curioso ele ser chamado pelo sobrenome, o mesmo pelo qual é conhecido um de meus quadrinistas favoritos, o italiano Massimo Mattioli, autor de provocativas HQs gore que, paradoxalmente, são hilárias. O Mattioli poços-caldense também era escritor, mas as semelhanças param por aí. Meu pai me contou que o homônimo local de um dos meus heróis da adolescência era reacionário. Também era notório que o Mattioli era um boêmio, portanto dado a bebedeiras. Ou seja, alguém com quem eu não tinha absolutamente nenhuma identificação. Meu pai e o próprio Mattioli me convidaram em algumas ocasiões para ir à casa dele em reuniões de amigos, mas me recusei todas as vezes. O anfitrião era muito urbano comigo, para usar um termo caro aos meios jurídicos, então evitava conversar com ele, pois não queria entrar em conflito, algo inevitável, com um amigo de meu pai que sempre procurou ser gentil. 

Neste primeiro de dezembro, quando que se completou três anos que meu pai se foi, em homenagem a ambos, peguei para ler um livro do Mattioli chamado Causos e Contos. É encadernado como uma apostila, nitidamente feito em impressora comum de computador, com os versos das páginas em branco. O conteúdo, é preciso dizer, é tão tosco quanto a apresentação. Nunca havia lido porque havia julgado pela capa, e, bem, eu estava até que certo. 

Não há nenhum conto, na verdade. Não é uma obra com valor literário; inclusive não houve revisão e, consequentemente, há uma profusão de erros crassos. São muitos causos, mas Mattioli não era um narrador habilidoso e o conteúdo é anedótico. Aliás, há literalmente anedotas copiadas de internet, texto antipetista de corrente de e-mail, supostamente do jurista Saulo Ramos, e além do prefácio, surgem sem aviso, no meio dos textos do autor, poesias e discursos do ex-prefeito Sebastião Pinheiro Chagas. É uma bagunça tão absurda que foram inseridos textos que simplesmente não fazem sentido depois de alguns parágrafos, como o que Mattioli conta que foi presidente do diretório do PAN, o Partido dos Aposentados da Nação, em Poços de Caldas. E, a despeito de tudo isso, foi uma leitura maravilhosa. 

Explico. Primeiro, alguns causos são naturalmente engraçados, ainda que muitas vezes anticlimáticos. Segundo, há o valor histórico. É o registro, ainda que simplório, das memórias e da oralidade de uma geração – e não só do autor, que ajuda muito a tornar a leitura mais palatável por não ser pudico, lançando mão de palavrões com naturalidade. E, claro, passou a ter valor afetivo para mim, e, imagino, para alguns dos citados e seus parentes. 

Num dos textos de Pinheiro Chagas, ele conta que em 2009, “sem a presença de incômodos abstêmios” (ainda bem mesmo que não ia a esses encontros, eu era straight edge à época), cada um da turma do Bortolan, como denominava-a Mattioli, devia fazer um brinde. Em meio a saudações pomposas, “em seguida Daniel da Luz: ‘Um brinde às mulheres do mundo inteiro que não queiram nosso dinheiro’”. É machista, mas como conhecemos bem as infâmias do meu pai, isso levou a mim e ao meu irmão às risadas e a minha irmã simultaneamente às gargalhadas e ao choro. Até procurei na web para ver se era um dito popular esquecido, mas parece ser uma frase dele mesmo – e bem típica. Não sabíamos disso e, graças ao livrinho que desprezei, conheci um pouquinho mais de meu pai. Isso é uma enormidade quando eles já não estão aqui para contar essas histórias. E eu não saberia contá-las melhor.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor


O exemplar de Causos e Contos, de Marcos Mattioli, que pertenceu a meu pai e ficou de legado para minha família. Nas outras fotos registrei a dedicatória feita pelo autor a meu pai, os trechos que ele é mencionado e uma anotação a caneta que determina a autoria de uma poesia a Sebastião Pinheiro Chagas.







Monday, November 28, 2022

Passageira, de Lua Ferreira (resenha)

Este artigo foi publicado na página 8 da edição 7866 no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 26 de novembro de 2022. Eu mesmo revisei o texto, portanto posso ter deixado passar alguns erros.

Recentemente Lua Ferreira passou por Poços de Caldas e não tive o prazer de conhecê-la. Ainda bem para ela e outros convidados de uma festa de halloween a qual acabei não indo, pois, poucos dias depois, pela primeira vez, tive Covid-19, atingido por essa maldita nova onda que ora se avulta. De qualquer forma, descolei um exemplar de seu livro de estreia, Passageira, lançado pela Crivo Editorial em agosto deste 2022 que se finda. Ela é uma poeta de Além Paraíba (MG) e tem um perfil muito popular de poesia no Instagram (@soul_de_lua), com quase 180 mil seguidores. A contemporaneidade é a marca da sua poesia, portanto: é concisa, adequada para a publicação naquela plataforma/aplicativo, algo reforçado já na epígrafe que abre o livro, uma citação da poeta Marceli Andresa Becker (que encurta seu nome artístico para Mar Becker, tal como Luanna Ferreira, a Lua), outra potência da poesia brasileira contemporânea, a qual conheci lendo-a, claro, nas redes sociais. Passageira divide-se em duas partes. A primeira é denominada Ponto Morto e o tema preponderante, numa primeira leitura, é a ruptura, impressão já dada no primeiro poema. Poucos têm título, alguns possuem apenas uma frase, avizinhando-se, portanto, dos aforismos. “O que não vivemos é tudo que nos falta.” é a totalidade de um, outro resume-se a “encontrar uma sombra na espera”. É o que basta, a autora é uma mestra na concisão. Tanto que alguns poemas mais longos perdem o impacto ao ganhar narratividade. Numa releitura, essa primeira parte não parece tão melancólica. Há poesias espirituosas, como a que faz alusão ao mito de Ícaro: “minhas asas/sua beleza/sol e cera”. Há brincadeiras jogando com as palavras e paradoxos: “Tem gente que se acha/Eu me perco”. Uma das poucas poesias que foram tituladas, Bloco de notas, embaralha os sentidos: “segurar a onda e evitar/desnecessárias ressacas”. O alívio lúdico dá equilíbrio a essa primeira parte. A segunda chama-se Cinesia, que vem ser a capacidade de movimentar-se (tive que consultar um dicionário, desconhecia a expressão). Faz sentido: aqui o mote é a paixão e as descobertas oriundas da convivência. Vem como um bálsamo, mas não é tão impactante quanto a primeira parte – ou, melhor dizendo, impactou-me menos. A subjetividade de cada leitor que pesará isto, mas são dois movimentos complementares. O tom muda, algo que a poesia que abre essa parte também prenuncia. A singeleza de alguns poemas resvala na obviedade, infelizmente, mas também há pérolas: “você na multidão/é a multidão”, “Teus desertos/Me dizem/Oásis”, “pintei meu abismo de céu e subi”. Bastava cortar algumas páginas na edição e haveria um todo muito robusto.    

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor




Monday, November 21, 2022

Jacques, a Lenda

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7881 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). O texto foi revisado pela Juliana Gandra antes da publicação.

Jacques Rodrigues de Carvalho morreu aos 92 anos em 17 de novembro de 2022. Era uma pessoa boníssima, uma figura popular, conhecido como principal nome da filantropia na cidade, além de ser protético. Isso todo mundo em Poços de Caldas sabe. Quando eu era criança, no entanto, não sabia nada sobre ele e morava muito perto do Pronto-Socorro de Assistência Social Jacques. Cresci no bairro Marçal Santos, colado no Jardim do Ginásio, onde fica a rua Comandante Ary Lopes Buono, endereço da famosa instituição filantrópica mantida lá por décadas pelo Jacques. Bem, conforme fui crescendo, como toda criança, comecei a me aventurar cada vez mais longe de casa para brincar. “Longe” às vezes era uma rua abaixo, fora da vista dos meus pais. Nos anos 1980 (não sei se o hábito permanece), noto agora que havia um método de pais em geral, não só os meus, de tentar assustar crianças com histórias de loucos violentos pelas ruas, com o intuito de evitar que fôssemos longe. Lembro disso, de forma mais pronunciada, na vizinha Botelhos, cidade de meus avós maternos, onde havia o “Joaquim Louco”, um sujeito que vagava a esmo pelas ruas. Diziam sempre que ele ia nos pegar – para fazer o que, eu não sei. Sei que a PM uma vez bateu no pobre Joaquim na porta da casa dos meus avós; não esqueço da poça de sangue, do cheiro forte de ferro e de ver dois dentes caídos na calçada. Quando contei isso para meu tio Helinho, recordo-me bem dele dizer “Infelizmente tem gente que nasce apenas para sofrer”. Por que narro isso? Porque o Jacques, como é de conhecimento geral, tinha para si a missão de ao menos dirimir um pouco o sofrimento dessas pessoas. E muitas delas, ao procurá-lo, passavam na rua Berilo, a rua abaixo da minha, que sai em frente ao Pronto-Socorro Jacques. Nos politicamente incorretíssimos anos oitenta, claro, pais do meu bairro tentavam dissuadir seus rebentos de brincar na rua com essas histórias de malucos que iam nos atacar. De fato, uma vez uma pessoa em andrajos nos xingou gratuitamente quando jogávamos bola lá e depois rumou em direção ao Jacques. Foi só isso, inofensivo. Sempre via gente muito humilde, pessoas em situação de rua, às vezes descalços, caminhando na rua Berilo e depois os via na porta do Jacques. Isso me atiçou a curiosidade, perguntei sobre ele para meu pai, que me disse que Jacques era um protético espírita que ajudava muita gente. Na minha imaginação infantil, achava que ele era francês, por causa do nome. E que era alguém muito alto, forte, que carregava desvalidos nos braços. Passei a jogar futebol até mesmo na rua Nico Duarte, quase ao lado do Jacques, e nada de vê-lo. Vai ver o vi, mas como ele não se encaixava na minha imaginação, passou batido. Veio a adolescência, fui morar fora, voltei adulto. Tinha quase 30 anos e um dia me toquei que não fazia a menor ideia de como era o Jacques. Dei um jeito de inventar uma pauta só para marcar uma entrevista com ele. E que surpresa! Era um senhorzinho franzino, vestido todo de branco, simpático e que parecia sempre estar com pressa. Ressalto que não era estressado ou ríspido. Precisava fazer algo ou ajudar alguém, justificou. Então aquele era o lendário Jacques. Um dos raros casos que a realidade era melhor do que a lenda.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor

Jacques Rodrigues de Carvalho em dezembro de 2021. A foto foi tirada por Tokinho Carvalho, sobrinho dele, que me autorizou a reproduzir a foto aqui. 


Monday, November 14, 2022

O Menino do São Benedito e outras crônicas, de Luis Nassif (resenha)

Esta resenha foi publicada na página 7 da edição 7878 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 12 de novembro de 2022. A base do artigo foi um texto que escrevi para o Good Reads sobre o livro; aproveitei o gancho da censura determinada pelo prefeito Sérgio Azevedo para atualizá-lo e ampliá-lo. 

No aniversário de 150 anos de Poços de Caldas veio à tona um rumoroso caso de censura, imposta pelo prefeito, da qual foram vítimas os realizadores de um documentário sobre a cidade e o jornalista poços-caldense Luis Nassif, que ressaltou ser autor de dois livros sobre a história de Poços. Pergunto-me, entretanto, quem os leria na medíocre bolha dos gabinetes onde se tomam decisões estultas. Por acaso, resolvi ler um deles em meados deste ano: O Menino do São Benedito e outras crônicas, um calhamaço de 456 páginas que, na verdade, não se aprofunda tanto assim na história do município. Foi uma boa leitura, mas tenho alguns senões. O grosso da obra é composto de crônicas sobre música, especificamente MPB, estilo sobre o qual não tenho conhecimentos profundos. Procurei para ouvir na web várias das canções que Nassif cita, uma facilidade que tenho agora, mais de vinte anos após o lançamento do livro. Deu o que fazer para achar algumas músicas, pois os nomes estão errados nos textos. Há muitas imprecisões, mas, ao menos, em boa parte das vezes há o uso de marcadores como "acho que", "se não me engano" e por aí vai. Isso, no entanto, não se aplica aos nomes das canções: parece que ele nunca conferia os títulos. De qualquer forma, descobri várias pérolas graças à leitura das dezenas de crônicas sobre artistas tanto famosos quanto obscuros. Há muito ufanismo nos textos que refletem mais sobre a realidade socioeconômica do Brasil, um exagero completo mesmo, e a crença dele num país que progrediria civilizadamente esbarra no tecnicismo econômico tucanoide - o mesmo que ele tanto critica e o que nos jogou e continua nos jogando na barbárie, agora agravada pela extrema-direita abraçada pelos censores de plantão. As leituras mais prazerosas são das crônicas sobre música, esporte e a respeito de Poços de Caldas. A mania dele de estabelecer um panteão pessoal de grandes personalidades, porém, me encheu o saco, pois é contraditória - tem uns três melhores discos da MPB de todos os tempos, muito acima dos outros, dependendo da crônica. E, sendo poços-caldense, não engulo muito esse culto a lideranças locais; tenho claro para mim que, em grande parte, não eram nada além de coronéis extremamente autoritários. A leitura dos textos, aliás, confirma que eu sempre estive certo sobre a empáfia e o mandonismo desses sujeitos. Essa tradição deplorável acabou resultando no que mesmo para o autor, aliás? E eu não quero saber quem comeu quem, outra aparente obsessão ao tratar desses fulanos e de outros poderosos, que aliás eram uns talaricos escrotos, a se julgar pelos relatos que Nassif faz candidamente. O que gostei mesmo é da crônica que dá título ao livro, a respeito da infância de Nassif. Sempre estou ali por perto da praça da igreja do São Benedito e, mesmo tendo conhecido uma paisagem muito alterada, consigo visualizar todas as cenas descritas. Por fim, os textos sobre Walther Moreira Salles são um primor. Mesmo não tendo grande curiosidade sobre a trajetória de um banqueiro, atiçaram minha vontade de ler a biografia que Nassif recentemente lançou sobre Moreira Salles – o outro livro dele que aborda a história de Poços de Caldas, a qual a vida do fundador do Unibanco está intrinsicamente ligada.

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista, professor e revisor






Saturday, October 29, 2022

Fascista faz factoide

Senta-se à mesa. Olha o relógio de pulso – sim, ainda usa, com pulseira de couro –, abre o notebook. Liga-o. A inspiração foge pela janela. Contempla seu carro encerado, reluzente ao sol. Precisa trocá-lo por um modelo 2023. Fica para a semana que vem. É o momento de se concentrar para escrever. Abre um Red Label. Serve-se sem gelo. Agora sim. Arregaça as mangas. Literalmente. Ainda não está confortável.  Tira os suspensórios. Pronto. Senta os dedos no teclado. Não consegue pensar em nenhum trocadilho. Pena. Gosta deles, dão sabor à leitura. O texto está pronto. Não consegue encaixar nenhum no contexto. Bem, de qualquer forma, a gravidade do momento não permitiria. Apesar de desprezar a adjetivação, tão condenada nos manuais de redação, o fato é que a conjuntura a exige. É necessário conclamar outros trabalhadores a dar mais uma nota de confiança ao presidente. Sabia que assim que o postasse, o texto seria compartilhado pelos amigos. Um dos jornais locais sempre publica suas postagens como artigos de opinião. Esse, no entanto, tem que atingir mais gente. A eleição é amanhã. É fundamental ser claro. Frases curtas. Só que falta algo. Lembrou-se da história sobre igrejas que o melhor amigo, entre tragadas de cigarro sem filtro e talagadas de café, contou-lhe na padaria da praça. Tascou no fim. Belo arremate. A dúvida sobre a clareza ainda o aflige. Grita a empregada. Esbaforida, ela chega num átimo, ainda que a cozinha fosse longe. Achou que levaria mais uma descompostura imotivada. Ele pede que ela leia o texto. Ela lê, curvada sobre a tela, sentindo-se julgada e sabendo-se subjugada. “E então, entendeu?”. Ela assente. “Gostou?”. Ela perde o ar. Como quando a mãe faleceu de Covid-19. Lembrou-se do presidente tirando sarro de quem morreu assim, imitando quem puxava o ar em vão. Respira fundo. Esbofeteia o patrão. “Agora você tem algo emocionante para escrever a respeito”. Ambos estão atônitos. Ela retira-se, sem saber o amanhã, mas quem sabe?   

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor

Este é conto que enviei para o Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) ontem. Desta vez posto na data da publicação, por motivos óbvios. 

Não sei de quem é esta ilustração, tão compartilhada na internet, mas é fantástica. 


Monday, October 24, 2022

Uns Comédias

Semanas atrás escrevi sobre a aventura que foi a entrevista que fiz com o Ziraldo no começo do século. É um autor fundamental para mim, tanto pela leitura d’O Menino Maluquinho, um dos primeiros livros que li, talvez o primeiro, ainda na primeira ou segunda série do então ensino primário (o fundamental de hoje em dia), quanto pelas leituras em voz alta do Pasquim que meu pai fazia antes mesmo de eu saber ler, no fim dos anos 1970. Mais do que o jornal em si, recordo-me bem dos livros de piadas editados pelos agitadores do Pasquim. Meu pai lia para nós as menos maliciosas e, mesmo assim, ria muito. As capas eram desenhadas pelo Jaguar e o conteúdo foi compilado pelo Ziraldo. O ratinho Sig, obra do grande cartunista que foi e ainda é o Jaguar, era muito mais familiar e engraçado para mim do que o Mickey. O primeiro livro de Anedotas do Pasquim tinha ele na capa soltando peidos de fogo e, óbvio, eu sabia do que se tratava. Ria só de olhar para a atrevida ilustração. Infelizmente, o exemplar perdeu-se com nossas mudanças, que não foram muitas, mas suficientes para que algum buraco negro o engolisse e o livro perder-se para sempre. Já segundo volume das Anedotas do Pasquim foi preservado pelo meu pai, que até o encapou. Tem as marcas do tempo, pois é de 1980, e ficou-me de legado. Além das muitas risadas na infância, garantiu-me depois mais gargalhadas na adolescência, quando passei a entender as piadas mais infames. Quando fui à palestra do Ziraldo em 2001, no IMS de Poços, peguei um autógrafo dele no livro. Claro, como a compilação teve (ótima) redação dele, ilustrado pelo Jaguar e lançado originalmente em 1975, obviamente é cheio de gracinhas preconceituosas e bestas. Não creio que caiba o termo politicamente incorreto, que é idiota e seria um anacronismo, pois não existia à época. Velhinho, até hoje aparentemente Ziraldo não dá o braço a torcer e não se emenda quanto à homofobia, por exemplo. É o humor de outra geração, que não dava a mínima em usar estereótipos de minorias, ainda que teoricamente fosse a favor dos direitos delas, e, com certeza, a censura ditatorial não estava nem aí com isso. A ditadura militar brasileira deixava passar piadas ofensivas às minorias e barrava as políticas, era um moralismo bem seletivo. Porém, também dá para notar que Ziraldo ironizava sutilmente os milicos em algumas piadas e os censores, burros, não percebiam. Ainda que recentemente, na ocasião da morte do mestre da nouvelle vague Jean-Luc Godard, o cineasta Kleber Mendonça Filho tenha trazido à tona uma sofisticada censura do filme A Chinesa, no qual a censora tanto derretia-se em elogios quanto apontava que o filme levaria a questionamentos da ditadura, fica patente que os censores em geral eram bem asininos. E naquela época era censura mesmo, feita a priori, de um regime de exceção, que levou à cadeia jornalistas do Pasquim; não eram decisões jurídicas a posteriori para evitar desinformação eleitoral, que, questionáveis ou não, agora são cinicamente definidas como “censura” por risíveis oportunistas que nunca escreveram ou falaram uma vírgula contra censura judicial de fato a biografias e livros. Ou, para usar um exemplo local, quedaram-se inertes quando os obtusos vereadores de Poços de Caldas, com duas exceções, fizeram uma moção de censura ao Queermuseu em 2017. E nem vou falar nada sobre as tentativas de implantar leis de mordaça em escolas ou intimidar educadores – opa, já falei, mas não esperem que esses sujeitos digam algo a respeito. Desses crápulas, pode-se esperar grita por censura assim que se depararam com alguma obra de arte que não gostarem. De qualquer forma, voltando às (boas) infâmias do humor setentista: o livro tem anedotas impagáveis; algumas sobrevivem mal a estes tempos, mas sobrevivem. Eu ainda gosto de uma sacanagem.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7864 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 22 de outubro de 2022. 


Monday, October 17, 2022

Faca de Três Gumes

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7859 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Em relação à publicação original no jornal, revisei o texto e corrigi dois pequenos erros de digitação.

Como disse na crônica passada, Fernando Sabino faria 99 anos nesta semana se não tivesse morrido um dia antes do seu aniversário de 81 anos. Como é o autor que mais li, ainda que talvez eu conheça mais profundamente a obra de outros escritores (Raduan Nassar, por exemplo, escreveu pouquíssimos livros), e como as inúmeras histórias dele são legais demais, não resisto à tentação de falar sobre ele mais uma vez. E aproveitando o ensejo, abordar a dificuldade de se estabelecer um cânone pessoal.  Afinal, semana passada afirmei que O Encontro Marcado é possivelmente é o melhor livro de Sabino. O fato, no entanto, é que talvez A Faca de Dois Gumes seja sua obra-prima. O livro foi concebido por Sabino como uma trilogia de novelas de mistério. A primeira história, O Bom Ladrão, é uma espécie de releitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis, que para meu gosto supera o original, pois apraz-me mais a linguagem seca e a fina ironia de Sabino, muito melhor do que os rococós machadianos – embora eu reconheça a inventividade do original, com certeza o mais criativo romance da história da literatura brasileira e uma leitura que me desconcertou, como acontece com todos que o leem com a devida atenção. Aliás, Sabino gostava tanto desse clássico machadiano que até o reescreveu em primeira pessoa. Apenas comecei a ler tal atrevimento umas duas semanas atrás na casa de uma amiga; chama-se Amor de Capitu. Nem precisa dizer que estou adorando, ainda que seja uma ousadia que tenha provocado narizes torcidos; o crítico literário Alfredo Monte, falecido precocemente em 2018, não se furtou a detonar implacavelmente a recriação de Sabino – que, sim, parece feita de encomenda para vestibulandos. De qualquer forma, isso é uma digressão na qual é melhor eu não me alongar tanto. Voltando à Faca de Dois Gumes, a segunda novela é Martini Seco, que eu já havia lido como um livro solo no carnaval de 2015, na casa de outra amiga, em Brasópolis. Não sabia que compunha este volume e ri mais ainda da trama rocambolesca ao relê-la, pois traz o humor do autor com o qual estou acostumado. A última novela é a que dá nome ao livro, aliás lançado originalmente em 1985; lá pelos idos de 1992/93 assisti ao filme baseado nesta história, o qual foi dirigido por Murilo Salles e estrelado por Paulo José, José Lewgoy e Marieta Severo em atuações marcantes. De longe é a melhor parte do livro e já sabia que era fortíssima devido à adaptação cinematográfica. A novela (ou conto, talvez) de Sabino diverge muito do roteiro da película a partir de certo ponto, mais ou menos no meio da trama, e é muito superior, embora o filme seja excelente. É literatura policial na sua melhor forma, mas mais requintada, extremamente criativa e com linguagem trabalhada para ser a mais concisa possível, dando força à narrativa a ponto de eu não conseguir parar de ler; fui sequestrado pela história. É aquilo: reafirmo que O Grande Mentecapto é o meu livro do coração, mas às vezes acho que esta/e novela/conto isolada/o é o ápice da literatura de Sabino.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor


Fernando Sabino. Foto de domínio público. 


Monday, October 10, 2022

O encontro marcado com o grande mentecapto

Esta crônica foi publicada na página 8 da edição 7855 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 08/10/2022. Eu mesmo revisei o texto antes da publicação.

Jamais contabilizei, mas creio que o escritor cujo mais livros li foi o Fernando Sabino. Mesmo assim, como ele era prolífico, não li nem a metade. Semana que vem ele faria 99 anos, se não tivesse morrido um dia antes do seu aniversário de 81 anos. Eu já gostava dele desde que, na escola, uma professora teve a feliz ideia de levar vários volumes da série Para Gostar de Ler para nós. O bom humor dele me conquistou de vez no fim dos anos 1980, quando meu irmão Eurico leu O Grande Mentecapto – era leitura obrigatória para a turma dele, mas ele gostou tanto que me indicou e foi um dos poucos livros de autores brasileiros que eu li na transição da infância para a adolescência porque quis e não devido às obrigações escolares. Engraçadíssimo e escatológico, foi uma leitura tão marcante que fiquei chocado quando fui comprando em sebos a série Para Gostar de Ler para relembrar aquelas crônicas e aqueles contos que tanto me deliciaram e, mais de três décadas depois, descobri que o texto mais hilário era do Carlos Drummond de Andrade, a quem associo à melancolia de sua obra poética. Eu jurava que o rocambolesco conto humorístico O Assalto era do Fernando Sabino. Felizmente, ele era tão versátil quanto o Drummond. Ou infelizmente. Parei de lê-lo no começo dos anos 1990. Meu pai comprou aquela biografia prematura Zélia, uma Paixão, um best-seller de Sabino. Este livro se perdeu em mudanças e não faz a menor falta. É muito ruim; foi uma grande decepção e a antipática biografada, a malfadada ministra da Fazenda durante o confisco das poupanças do governo Collor, não ajudava nem um pouco. Ainda bem que no final daquela década uma amiga de infância, a Juliana Mariano, apareceu em casa com O Homem Nu, uma coletânea, e o engraçado conto que dá título ao livro reconectou-me com Sabino. Descobri como ele pode ser um autor lírico, caso do belíssimo O Menino no Espelho. Fiquei enlevado ao terminar a leitura; o mesmo aconteceu em 2018, quando concluí a leitura de O Encontro Marcado. Só que este é um romance duro, com muitos assuntos que provavelmente foram tidos como tabu quando do seu lançamento, em 1956: abuso sexual, adultério, homossexualidade, aborto. Ainda assim, é terno na medida do possível; nenhum dos temas que citei têm abordagens que sugiram qualquer propensão à polêmica gratuita, mas sim um tratamento literário que os incorpora com sensibilidade à tessitura da densa narrativa. Apesar das incongruências e torpezas do protagonista Eduardo Marciano, cuja formação, danação e redenção acompanha-se desde a infância, é possível ter empatia pelo personagem e sua busca por uma quimera indefinível que o aflige. Muito pouco do Sabino que cresci lendo está presente neste primeiro romance dele, ou seja, o humor mordaz e leve. Ainda assim, é possível notar características que aparecerão depois, como o encontro entre personagem e escritor, algo presente n’O Menino no Espelho, lançado 26 anos depois. É um recurso narrativo que me maravilhou quando pela primeira vez me deparei com tal engenho na HQ Homem-Animal, escrita pelo escocês Grant Morrison, que lançou mão de metalinguagem para criticar o pretenso realismo dos quadrinhos de super-heróis. Só que isso é outra história, para outro momento. Possivelmente O Encontro Marcado é o melhor livro do Sabino, mas meu favorito sempre será O Grande Mentecapto – que eu viva o bastante para relê-lo.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor




Monday, October 03, 2022

Platitudes

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7850 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). 

É muito fácil fazer um artigo de platitudes igual aos que pululam por aí aos montes em tudo que é periódico. É só juntar os ingredientes básicos, cozinhar e servir morno em largas porções ao leitor. Definições copiadas de velhas enciclopédias, de preferência. Fica mais difícil rastrear. Wikipédia é muito manjado. Lembro de uma coluna literária num extinto jornal local em que o rapazinho só pegava verbetes como o de Monteiro Lobato e jogava lá como se fosse o autor. Já não lembro bem, mas tinha um ou outro trecho surrupiado de sites educativos. É bom dar uma disfarçada, né? Como se fosse um trabalho escolar copiado do coleguinha, com um ou outro trecho alterado, para o professor não perceber. Pena que existem ferramentas de busca na internet, que chato. Esse é o tipo mais fácil de falsário de ser identificado. Também, de uma hora para outra começar a apresentar certa erudição, depois de apresentar textos primários, é mancada. Sei lá, vale tudo para deixar o próprio nome em evidência. Os manuais de autoajuda provavelmente dizem que é imperativo aparecer a todo custo, deve ser isso. Eu gosto de uma definição cínica, bem característica do pragmatismo norte-americano, da qual jamais me esqueci e que li há mais de vinte anos no Mate-me Por Favor, clássico da história oral. Salvo engano, foi dita pelo Jeff Magnum: boa publicidade é boa publicidade, má publicidade é boa publicidade e nenhuma publicidade é má publicidade. Só por isso não cito os nomes dos autores das infâmias. Ora, um bom texto de platitudes é igual indireta de rede social: não se cita os nomes de quem se critica, senão não seria platitude. Perderia a característica de bom mocinho. Só que eu também aprecio uma definição da qual, dessa vez, me lembro bem do autor: não vou dar palco para babaca, como dizia o jornalista Ricardo Boechat, tragicamente falecido e que faz muita falta neste momento. Aliás, eu conferiria se o Jeff Magnum, baixista do Dead Boys, é mesmo o autor da frase que citei antes, mas meu exemplar do livro foi surrupiado.  Tudo bem; se meu intento é emular um texto repleto de platitudes, uma citação errônea tem seu charme. E, de qualquer forma, o exemplo que citei antes é até ingênuo. Os piores tipos de artigos de platitudes são os escritos por gente como a também já falecida Lya Luft. Ela até tem um êmulo local também. Escreve bem, muito corretamente, sem plagiar ninguém, tal como ela o fazia, e vai-se lendo aquela conversinha mole, que parece muito civilizada e que muitas vezes tenta diferenciar-se pelo humor capenga, feita para enganar incautos ou para coonestar pulhas que compartilham aqueles textos aparentemente sofisticados. E, de repente, lá está: aquela passada de pano implícita para o fascismo mais descarado, o desprezo pelas centenas de milhares de vidas que poderiam ser poupadas e que ainda foram alvo de deboche ao morrer de Covid-19. Fascismo ilustrado ou fascismo tosco dão no mesmo. Foi mal, queria escrever um texto parodiando essas bobagens, mas falhei brutalmente devido à minha fisiologia: falta-me sangue de barata.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, revisor e escritor




Monday, September 26, 2022

Nada Aconteceu

Já repararam que Poços de Caldas é, literalmente, o fim da linha? Escrevi essa crônica na Praça do Xadrez Gigante, pisando sobre o tabuleiro sem peças, depois de observar atentamente o movimento ao redor. À minha direita, está o final dos trilhos da ferrovia Mogiana, com uma rotatória para virar a locomotiva e os vagões dos trens que não vão até lá, que eu saiba, desde a minha adolescência, há 28 anos. Se um maquinista ensandecido quisesse fazê-lo, teria que romper o muro da lanchonete que avançou sobre os trilhos há uns bons dez anos, cerca de cem metros à minha esquerda, oculta pelo prédio da antiga estação. O barulho incessante do tráfego da rua Junqueiras, muito movimentada mesmo aos domingos, permite divisar o canto de pássaros vez por outra. Na sombra, olho de soslaio o monumento aos imigrantes italianos, banhado pelo sol que também ilumina o conjunto arquitetônico mais ao fundo, o decrépito chalé do Conde Prates, que devia estar presente na inauguração da estação ferroviária por Dom Pedro II, o qual talvez tenha pisado no exato local onde estou, em 1886. Muita tradição, família e propriedade para ensejar no mínimo algum abuso verbal por parte das autoridades é o pensamento que me passa pela cabeça e me mantém alerta. Ao lado da cerca à direita, um guarda municipal fala ao celular. Como escreveu Kerouac num pequeno relato que consta no livro Cenas de Nova Iorque, não se pode vagabundear sem ser importunado pelos homens da lei. Passa um pouco das duas horas. O guarda que falava ao celular, um senhor alquebrado, cabelos todos brancos por baixo do boné, ligeiramente curvado, vai-se distraído pela calçada. Não dirige o olhar para onde estou; parece alheio a tudo, carregando três pães franceses em um saco transparente. Do outro lado da rua, um senhor que caminha vagarosamente olha insistentemente na sua direção, como se fossem velhos inimigos; mas o guarda, imagino, só pensa em chegar em casa. Tem uma expressão aliviada e desinteressada por qualquer conflito. Desvio o olhar para mais a esquerda, onde, no começo da avenida, um moleque de boné observa o colega tentar seguidamente um backside heelflip, uma manobra de skate que também nunca acerto e que me faz invejá-los naquele momento. Então sou surpreendido pelo senhor que tão vagarosamente andava do outro lado da rua: chegou perto de mim em um átimo. Ele usava óculos de lentes grossas e de armação escura, um suéter verde, calças jeans puídas, tinha a cara amarfanhada e a barba por fazer com mais fios brancos do que negros, tal como o cabelo grisalho. Pergunta-me algo, não entendo. Aproximo-me. “Você trabalha aqui?”. Diante da minha negativa, pede desculpas e afasta-se, célere. Tem algo que parece um canivete suíço numa das mãos e um grande corte já cicatrizado, mas com as bordas muito sujas, na outra. Transtornado, caminha em direção à avenida. Os garotos já remavam seus skates para longe. Talvez eu tenha escapado de várias ameaças e eles também.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, professor e revisor

Este é o xadrez gigante de Poços de Caldas. Na crônica refiro-me à praça com o nome Praça do Xadrez Gigante, mas creio que o certo é Praça do Imigrante. Escrevi a crônica originalmente em 2013 para o site Clichetes. Reduzi-a drasticamente para publicá-la no jornal, creio que ficou muito melhor. Foi escrita no local, como menciono, num dia ensolarado. Tirei esta foto hoje, na data desta postagem (26/06/2022), uma segunda-feira chuvosa.   



Monday, September 19, 2022

Literatura em pequena escala

Esta crônica foi publicada na página seis da edição 7840 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 17 de setembro de 2022. O

Há literatura no Twitter? Há e muito. É muito curioso quando lembro do desprezo e descrença com que José Saramago referiu-se a respeito da famosa rede social. Na verdade, é mais uma rede de informação do que social, para quem sabe usar e tem paciência em entendê-la. Saramago não se conformava que as pessoas se expressassem em apenas 140 caracteres, que era o limite de toques daquela rede então (hoje é o dobro). Para ele, depois o que viria seriam grunhidos. Eu não era tão pessimista quanto o mal-humorado autor português, mas também fiquei incrédulo quanto ao potencial da plataforma há doze anos. Resolvi entrar e realmente usá-la quando meu amigo João Fernando Baldan começou a publicar nanocontos lá. Gostei tanto que fiz isso por anos. Contos minúsculos, com uma frase ou duas, também conhecidos como minicontos, surgiram em meados do século passado, com Ernest Hemingway e Augusto Monterosso. Eu já gostava do formato e o Twitter é perfeito para isso. Foi feito até um livro só com aforismos, minicontos, pensamentos e poesias escritos no Twitter: Fabrício Carpinejar, que mencionei na crônica da semana passada, foi esperto e já em 2009 lançou um livro com seus tuítes primevos. É uma pena que foi justo que se tornou um escritor irregular. Concordo com o juízo dele de que banalidades têm que ser escritas e, também são, ou podem ser, literatura, afinal segui pelo mesmo caminho – ao menos naquela rede de microblogs. O problema é que Carpinejar era um bom poeta que, convertido em figura midiática, derrapa em generalizações e num pieguismo que depois se tornaria mais constante. Feita esta observação, a qual lamento, pois ainda o admiro, o livro também coleta sacadas impagáveis. Vale a pena segui-lo no Tuinto (quem é tuiteiro se permite a usar a expressão), apesar de alguns pesares, como o faço desde aquela época. E não há nada de errado em se tornar uma espécie de celebridade literária, ressalte-se, mas também é fato que, como diz meu amigo João Antônio Sampaio Chaves, ele é um “escritor de programa da Fátima Bernardes”. Mesmo caso daquele Bráulio Bessa, que é um poeta popular interessante, mas também tem o mesmo perfil de ser admirado por cultuadores de subcelebridades, tipos que compram seus livros e sequer os abrem. Bessa também está no Twitter, aliás. Hoje, autores em geral usam mais o Twitter para publicar links dos seus textos do que minicontos ou haikais. É o caso de um gênio como Alejandro Jodorowsky, o nonagenário cineasta e escritor chileno. É uma pena. Eu mesmo joguei a toalha e não produzo mais nada inédito por lá. Por outro lado, quem produz aforismos mesmerizantes quase diariamente naquela rede é Penny Rimbaud, o octogenário ex-baterista do pioneiro grupo anarcopunk Crass. Esse sim eu recomendo, sem reservas. E há muitos outros mais, mas em homenagem ao espírito da concisão, esta crônica será mais curta do que meu habitual e encerro por aqui.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor


Esta era a foto de fundo do meu perfil no Twitter há uns dez anos. 


Monday, September 12, 2022

Um Tolstói autografado

Esta crônica foi publicada na página oito da edição 7835 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 10 de setembro de 2022, véspera do final da edição presencial da Flipoços em 2022. Eu a escrevi no dia 9 de setembro, coincidentemente 194 anos após o nascimento de Tolstói. Em relação à publicação no jornal, eliminei alguns pronomes para evitar repetições e troquei uma palavra de lugar ao revisar o texto; não é nada que altere o sentido. 

Neste final de semana ainda está rolando a Feira do Livro de Poços de Caldas, a Flipoços, que teve início há uma semana. É um bom mote para relembrar uma história engraçada. Posso jactar-me de ter um livro do Tolstói autografado. O detalhe é que foi, óbvio, de um jeito bem torto. Nos idos de 2009 eu iria numa palestra na Flipoços e era daquelas cujo ingresso se dava mediante a doação de um livro. Não me recordo mais qual era, mas a circunstância é inesquecível. Queria muito ir, não tinha nada em mãos para doar, então escolhi, com dor no coração, qual dos exemplares da minha biblioteca iria sacrificar. Optei por uma edição de bolso de A Morte de Ivan Ilitch, clássico do Leon Tolstói, o genial e contraditório escritor russo – um conde anarquista e cristão. É, de longe, um dos melhores livros que li na vida, um marco da história da literatura. Li no fim da década de 1990 e decidi passar pra frente o livrinho pensando em comprar depois uma edição em formato regular, com fortuna crítica, prefácios e posfácios. Aí aproveitaria para reler. Então bora lá. Ao chegar no Palace Casino, onde a feira estava ocorrendo, encontrei minha amiga Nany Dantas, que hoje mora no Paraná, e engatamos um bate-papo. Haveria, no mesmo dia e horário da palestra da qual esqueci, outra do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar. Eu sabia quem ele era de nome, gostava das (poucas) poesias dele que li, mas não fazia a menor ideia de como ele era. Nem a Nany, que nunca tinha nem ouvido falar dele e é quem se recorda melhor do episódio. Ela que me ajudou a recuperá-lo na memória: enquanto estávamos lá de bobeira proseando, o Carpinejar estava passando por perto e nos abordou, convidando-nos para assistir à palestra dele, chamada “Fabrício Carpinejar – Conselhos Amorosos”. Tínhamos visto na programação e não nos interessamos nem um pouco porque havíamos achado o nome muito tosco. Só que ele era muito simpático e nos convenceu a ver. Ele escreveu umas frases no braço dela, não me recordo se deu um autógrafo para ela (acho que sim), então olhou para o meu livro do Tolstoi e disse: “eu te dou um autógrafo!” – o qual não havia pedido, o que foi hilário. Então sapecou a assinatura dele no frontispício d’A Morte do Ivan Ilitch. Desisti totalmente da palestra que assistiria e conservo esse livro até hoje. Valeu a pena, a fala dele foi muito engraçada: falou da esposa, chorou, disse que era um emo extemporâneo velho e careca, só faltou rolar no chão – ou rolou? É um showman, sem dúvidas, e ele passou a brilhar na mídia. O que o torna alvo, é claro. Três anos depois vi, na Bienal do Livro em São Paulo, o escritor Ricardo Lísias atacá-lo pessoalmente, dizendo que o Carpinejar não tinha literatura e por isso precisava pintar as unhas para aparecer, a ponto de o clima esquentar tanto que tiveram que chamar a segurança para evitar uma altercação física – habilmente contornada pelo também escritor Antonio Prata, que se sentou entre eles. Obviamente Lísias está para lá de errado, embora a qualidade literária de Carpinejar, infelizmente, tenha decaído mesmo ao longo dos anos. Mas isso é para meu gosto e é outra história. Aliás, Lísias me bloqueou no Twitter quando relembrei essa história – puta cara chato, ser literato ou bom escritor (dizem que ele é, estou à pampa e não vou conferir) não dá a ninguém o direito a pisar nas pessoas. Tolstói, que realmente era fodão, não o faria. E eu tenho um livro dele autografado.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, professor e revisor





Monday, September 05, 2022

Leituras que levam à alteridade

Esta crônica foi publicada na página sete da edição 7831 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Em relação à publicação no jornal, só corrigi dois pequenos erros de digitação (sobrou uma palavra numa frase, em outra faltou), não fazendo uma revisão aprofundada.  

Há livros que conectam os leitores vorazes de Literatura aos leitores eventuais. Notei isso com o passar do tempo: não são exatamente clássicos, obras que fazem parte do cânone ocidental, nem livros de leitura obrigatória nas escolas e para vestibulares/Enem, ou mesmo necessariamente best-sellers, mas sim livros que acabam calando fundo no inconsciente coletivo. Podem ser tidos como subliteratura por grande parte da crítica, mas não necessariamente o são. O Pequeno Príncipe, O Menino do Dedo Verde, Meu Pé de Laranja Lima encaixam-se nisso: li por mera curiosidade, mas ao escrever a respeito, notei que muita gente que parece não se interessar por livros comenta-os comigo – e muitas vezes fazem reflexões aprofundadas. Em comum, foram pensados para o público infanto-juvenil, ou seja, são obras de formação. O Profeta, de Gibran Khalil Gibran, não foi pensado para um público jovem (que eu saiba), mas talvez também seja uma obra para formar caráter, porém, através da fé. Embora não seja meu tipo de literatura, foi uma leitura prazerosa. Peguei para ler uma edição de 1976, traduzida por Mansour Challita, que também fez um dos prefácios, além do Austregésilo de Athayde, escritor do qual tenho vaga lembrança de ver na TV quando eu era criança, pois ele era presidente da Academia Brasileira de Letras. Comecei pelo longo posfácio, na verdade um catálogo da editora de Challita, no qual ele, meio cabotino, fala de seus livros e de autores do Oriente Médio; depois li os prefácios, algo que não costumo fazer antes de ler a obra. Numa noite mergulhei na trama em si e, como Challita afirma na orelha, levou apenas duas horas de leitura. É a história de um sábio que se despede de uma cidade, Orphalese, onde passou muitos anos, discursando para a população. Parece-me, mal comparando, com o já citado O Pequeno Príncipe, mas mais voltado para adultos. O Profeta, aliás, precede o clássico de Saint-Exupéry. É mais profundo em suas reflexões sobre a vida, em especial sobre o papel de pais e mães e numa bela alusão implícita, no meu entender, ao sexo. Já conhecia Gibran de poemas que li no jornal do Instituto Cultural Cia Bella de Artes, na primeira década deste século, e é impossível não notar que ele faz prosa poética n’O Profeta. É um livro de proselitismo religioso, não tenho dúvidas, mas a qualidade literária permite ser lido por qualquer pessoa, inclusive ateus e agnósticos. Peca pelo esquematismo das perguntas da população da cidade a Al-Mustafa, o profeta do título; minha impressão é que Gibran quis de certa forma emular a Bíblia e, em especial, a vida de Jesus (o que fica claro pela leitura do posfácio), simplificando seus ensinamentos para que mais gente os compreenda. Parece-me, diga-se de passagem, que há paralelos entre a desdita de Al-Mustafa não só com a de Jesus Cristo, como também com a de Sócrates. Há uma personagem feminina, a vidente Almitra, a única do livro que também ganha um nome, e é seu ponto de vista que dá o tom do fim, destacando o sagrado feminino. Vejo edições recentes da obra por aí, creio que ainda é algo que se infiltra em muitas consciências.

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor


O jovem Khalil Gibran fotografado por Fred Holland Day. Foto de domínio público.

Monday, August 29, 2022

Viver e ler

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7826 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 27 de agosto de 2022.  

Semana passada escrevi a respeito da memória afetiva acrescida à leitura do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, pois li-o em voz alta para meu pai, que tinha dificuldade em enxergar no final da vida. Foi mais do que justo, afinal ele lia gibis do Gasparzinho, do Recruta Zero, do Brasinha, da Turma da Mônica e de alguns personagens da Disney para mim e meu irmão quando éramos criancinhas – os de super-heróis vieram quando já estávamos alfabetizados. O fato dele deixar para ler algumas histórias no dia seguinte fez com que nos apressássemos a aprender a ler, pois queríamos saber como acabavam todas as histórias de uma vez. Ele também lia algumas histórias do Pasquim para nós; as que davam para uma criança entender, claro. Graças a isso, tornamo-nos leitores de fato. E era um grande prazer ler ou reler livros para ele, o clássico do Suassuna não foi o único. Queria ter lido mais obras ainda; comprei livros do Neil Gaiman, da J.K. Rowling, do Yuval Noah Harari e de outros autores apenas e tão somente para fazer a leitura para ele, mas não deu tempo. Até daria, mas às vezes ele pedia para eu parar um pouco para darmos rolê (afinal a literatura é sobre a vida e a vida também é andar por aí à toa), outras vezes preferi deixá-lo de boa assistindo novelas globais, as quais odeio, mas que já era um hábito de anos e uma predileção que eu não tinha o direito de cancelar. Portanto, em outros horários, consegui reler, desta vez em alto e bom som, pequenas obras do Jorge Amado, do Marcos Bagno, da Cecília Meireles e vários outros autores para ele. Só houve um livro extenso que li de ponta a ponta, e esse comprei de presente para ele, não foi uma releitura: Sócrates e Casagrande, uma História de Amor, biografia escrita pelo jornalista Gilvan Ribeiro em colaboração com o próprio Casão. Foi uma leitura melhor do que esperava, pois o livro fala muito de arte e política, além de futebol, devido à intensa vida que ambos levaram. E aborda, claro, o mítico período da Democracia Corinthiana e a militância de ambos contra a ditadura militar. Tem até uma cabulosa história da repressão que desconhecia: um dos irmãos de Zico, o também jogador de futebol Nando Antunes, foi torturado por seu trabalho como educador e teve a carreira de boleiro profissional prejudicada. Infelizmente, enquanto livro-reportagem, a obra carece de uma melhor edição de texto: é repetitivo a ponto de ser enfadonho em alguns trechos. Ainda assim, as memórias de Casagrande e a apuração de Ribeiro compõem um belo painel da amizade entre Sócrates e Casão, do rompimento implícito e da reconciliação, dos amores e filhos, do calvário do vício em drogas legalizadas (Sócrates) e ilegais (Casagrande) e, também, traz muitas histórias impagáveis, dentro e fora de campo, como, por exemplo, uma do naipe de João Gilberto – sim, o pai da bossa nova – realmente tentar mudar a escalação da seleção de 1982, além de alugar Sócrates ao telefone. Para nós, que somos de Poços, o livro ainda traz o prazer extra de contar algumas das passagens de Casagrande na Caldense. Lembro bem de quando ouvi no rádio a notícia da morte de Sócrates e que os jogadores do Coringão ergueram o punho em homenagem ao seu gesto característico, na final contra o Palmeiras em 2011. Estava na estrada, dirigindo para chegar em Franca, onde trabalhava num jornal, e não fiquei emocionado como fiquei depois ao ler como tudo aconteceu. Enquanto lia para meu pai, minha voz ficou embargada. Caso eu releia, agora sem a presença do meu pai, ou leia os outros livros escritos por Gilvan e Casagrande, creio que meus olhos ficarão marejados mais de uma vez.  

Daniel Souza Luz é escritor, revisor, jornalista e professor




Monday, August 22, 2022

Memória afetiva e leitura

Este texto, um misto de crônica, ensaio, resenha e memórias, foi publicado na página 7 da edição 7821 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 20 de agosto de 2022. É uma extrapolação das minhas breves impressões sobre o Auto da Compadecida, as quais escrevi para o Goodreads logo depois de ler o livro para o meu pai, pouco mais de dois meses antes da morte dele em 2019. 

Chegou a hora de reler Ariano Suassuna. Ao menos para mim. Ao menos o Auto da Compadecida. Ao menos. Ao lê-lo, li de uma vez só. Na verdade, li-o em voz alta, para meu pai, que enxergava com dificuldade após um AVC – ao menos ele não teve outras sequelas e teve alguma qualidade de vida até falecer, em 2019. Voltando à obra-prima de Suassuna, contando o tempo de leitura do prefácio, que foi lido depois, também para meu pai, não levou mais do que três horas. Já tínhamos assistido ao filme dirigido pelo Guel Arraes numa reprise há uns dez anos, pois à época do lançamento passou batido para mim; acho que meus familiares já tinham visto até antes, quando foi exibido em forma de minissérie. O texto é muito prazeroso de ser lido em voz alta, afinal foi concebido para o teatro. O que chamou minha atenção, em primeiro lugar, foram as referências das histórias populares que Suassuna cita no preâmbulo; apesar de ele ser cristão e conservador, ele não tem pejo em usar passagens escatológicas e que me parecem que bem blasfemas, pois também abordam traição e sexo. O ótimo prefácio da edição que li, de Henrique Oscar, traça as origens disto em textos medievais, nas quais Nossa Senhora também tem papel fundamental na salvação de almas. Ou seja, pode até escandalizar fundamentalistas, mas é uma obra fundada em narrativas católicas populares que refletem a profunda religiosidade do autor. Outro aspecto que me chamou a atenção é que no livro João Grilo é mais violento e maquiavélico do que me lembro dele ser no filme; parece-me bem normal isto ter sido atenuado no roteiro, pois dificultaria a identificação do público com o personagem. De qualquer forma, é um livro divertidíssimo, rápido de ser lido e ao mesmo tempo não é uma leitura superficial; pelo contrário, também há reflexões assertivas e precisas sobre racismo e gênero, uma surpresa enorme vinda de um autor assumidamente conservador. Nunca imaginaria pegar todos esses detalhes numa leitura em voz alta: eu gosto de ler quietamente, nunca sequer balbucio uma palavra que seja. E eu precisava esperar para reler. A saudade do meu pai vai aflorar, com certeza. Talvez seja o primeiro livro que eu estranhe ler da forma como sempre li. Recordo-me de um texto de um amigo, o professor e escritor Fábio Gonçalves de Carvalho, no qual ele comentava que alguns livros marcam tanto pelo texto quanto pelas circunstâncias em que foram lidos. No caso dele, ele citava que leu O Exorcista de madrugada e num hospital. O meu caso é mais terno.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, revisor e escritor.


Ariano Suassuna em 1971. Foto de domínio público.