Este artigo (uma mistura de resenha, memórias, crônica e causo) foi publicado na página 11 da edição 7891 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Depois da publicação soube, por intermédio de Luiz Carmo, que Armando Mattioli, irmão de Marcos Mattioli, faleceu no dia primeiro de dezembro de 2022. Foi justo quando li Causos e Contos, pois fazia exatamente três anos que meu pai havia falecido. Luiz é primo dos Mattiolis, meus sentimentos à família. Em relação ao texto publicado no jornal, fiz quatro pequenas correções aqui para eliminar repetição de palavras.
Nesta semana, no dia 28 de novembro, fez dois anos do
falecimento do advogado Marcos Mattioli. Ele era muito amigo do meu pai,
falecido pouco menos de um ano antes, em dezembro de 2019. Lembro-me de
Mattioli no velório dele, bastante compungido. Meu pai tinha a liberdade de
imitar o jeito peculiar como Mattioli falava na cara dele, sem
constrangimentos, às risadas; eram grandes camaradas mesmo.
Da minha parte,
achava curioso ele ser chamado pelo sobrenome, o mesmo pelo qual é conhecido um
de meus quadrinistas favoritos, o italiano Massimo Mattioli, autor de
provocativas HQs gore que, paradoxalmente, são hilárias. O Mattioli
poços-caldense também era escritor, mas as semelhanças param por aí. Meu pai me
contou que o homônimo local de um dos meus heróis da adolescência era
reacionário. Também era notório que o Mattioli era um boêmio, portanto dado a
bebedeiras. Ou seja, alguém com quem eu não tinha absolutamente nenhuma
identificação. Meu pai e o próprio Mattioli me convidaram em algumas ocasiões
para ir à casa dele em reuniões de amigos, mas me recusei todas as vezes. O
anfitrião era muito urbano comigo, para usar um termo caro aos meios jurídicos,
então evitava conversar com ele, pois não queria entrar em conflito, algo
inevitável, com um amigo de meu pai que sempre procurou ser gentil.
Neste
primeiro de dezembro, quando que se completou três anos que meu pai se foi, em
homenagem a ambos, peguei para ler um livro do Mattioli chamado Causos e
Contos. É encadernado como uma apostila, nitidamente feito em impressora comum de
computador, com os versos das páginas em branco. O conteúdo, é preciso dizer, é
tão tosco quanto a apresentação. Nunca havia lido porque havia julgado pela
capa, e, bem, eu estava até que certo.
Não há nenhum conto, na verdade. Não é
uma obra com valor literário; inclusive não houve revisão e, consequentemente,
há uma profusão de erros crassos. São muitos causos, mas Mattioli não era um
narrador habilidoso e o conteúdo é anedótico. Aliás, há literalmente anedotas
copiadas de internet, texto antipetista de corrente de e-mail, supostamente do
jurista Saulo Ramos, e além do prefácio, surgem sem aviso, no meio dos textos
do autor, poesias e discursos do ex-prefeito Sebastião Pinheiro Chagas. É uma bagunça
tão absurda que foram inseridos textos que simplesmente não fazem sentido
depois de alguns parágrafos, como o que Mattioli conta que foi presidente do
diretório do PAN, o Partido dos Aposentados da Nação, em Poços de Caldas. E, a
despeito de tudo isso, foi uma leitura maravilhosa.
Explico. Primeiro, alguns
causos são naturalmente engraçados, ainda que muitas vezes anticlimáticos.
Segundo, há o valor histórico. É o registro, ainda que simplório, das memórias
e da oralidade de uma geração – e não só do autor, que ajuda muito a tornar a
leitura mais palatável por não ser pudico, lançando mão de palavrões com
naturalidade. E, claro, passou a ter valor afetivo para mim, e, imagino, para
alguns dos citados e seus parentes.
Num dos textos de Pinheiro Chagas, ele
conta que em 2009, “sem a presença de incômodos abstêmios” (ainda bem mesmo que
não ia a esses encontros, eu era straight edge à época), cada um da turma do
Bortolan, como denominava-a Mattioli, devia fazer um brinde. Em meio a
saudações pomposas, “em seguida Daniel da Luz: ‘Um brinde às mulheres do mundo
inteiro que não queiram nosso dinheiro’”. É machista, mas como conhecemos bem
as infâmias do meu pai, isso levou a mim e ao meu irmão às risadas e a minha
irmã simultaneamente às gargalhadas e ao choro. Até procurei na web para ver se
era um dito popular esquecido, mas parece ser uma frase dele mesmo – e bem
típica. Não sabíamos disso e, graças ao livrinho que desprezei, conheci um
pouquinho mais de meu pai. Isso é uma enormidade quando eles já não estão aqui
para contar essas histórias. E eu não saberia contá-las melhor.
Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor
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O exemplar de Causos e Contos, de Marcos Mattioli, que pertenceu a meu pai e ficou de legado para minha família. Nas outras fotos registrei a dedicatória feita pelo autor a meu pai, os trechos que ele é mencionado e uma anotação a caneta que determina a autoria de uma poesia a Sebastião Pinheiro Chagas.
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