Sunday, April 06, 2025

Subnotas 91

Apesar de citar o Bukowski e o Oliver Sacks, a grande influência para que eu escrevesse esta coluna foi o mestre Luis Fernando Verissimo. Foto de Fernanda Peruzzo/Creative Commons. 

BUK 

Charles Bukowski é um dos meus escritores favoritos, ainda que tenha sido um ser humano deplorável e que seja canceladaço para as sensibilidades dessa década de 20. Se eu o tivesse conhecido, creio que não gostaria de ficar perto dele por mais de dois minutos. Entre um dos seus contos geniais, há um em que o sujeito, ao sair de casa, de tempos em tempos, depara-se com uma briga interminável na qual os protagonistas trocam inexplicavelmente de lado e quem tentava separar estava brigando com ambos.

METÁFORA 

Embora não tenha intenções políticas, o relato assemelha-se muito à volatilidade da política partidária/institucional. Os protagonistas dos contos de Bukowski quase sempre eram o alter ego dele, que não se importava com nada e não queria saber o que estava acontecendo. No entanto, um exercício literário interessante seria transportar a situação para outra, só que arquetípica: a do sujeito que acorda de um coma anos depois.

2005

Imaginem alguém que acompanhava atentamente política e estava em coma há vinte anos, como num livro do Oliver Sacks. Milagrosamente, acorda e logo quer se inteirar de tudo. Ligam a TV e Lula é o presidente. Estranha e pergunta se ficou só uns dias apagado. Esclarecem sua situação mais uma vez. “Mas ele está há vinte anos no poder?”. “Não, aqui não é Venezuela, embora os inimigos dele adorem dizer que é a mesma coisa”.

CHOQUE 

Até aí, tudo bem. Antes que tenham tempo de explicar algo, nosso paciente quase tem uma síncope. “Como assim o Alckmin é o vice?”, indigna-se o paciente impaciente ao vê-lo discursando em seguida na TV. Rindo, médicos e enfermeiros contam que até mesmo chamam o vice, de brincadeira, de “Camarada Alckmin”. O paciente recém-desperto esboça um sorriso.

INTERLÚDIO

Nosso amigo paciente pergunta então do grande nome da oposição: José Serra. Em meio às gargalhadas estrepitosas, comentam que acham que ele morreu. Alguém pesquisa no celular. “Não, está vivo, a bolinha de papel não o matou”.

SOSSEGA LEÃO

Os profissionais de saúde ficam preocupados. O paciente é tarado por política, quer saber mais sobre assunto do que sobre sua família e sua condição. “Mas o que aconteceu? Como que o Alckmin virou vice do Lula?”. Tentando resumir, um dos médicos, contrariando seus colegas, explica que após dois mandatos de Lula, Dilma foi eleita a presidente. “A ministra de Minas e Energia?”. “Não era mais, longa história. Aí ela foi reeleita e e sofreu um impeachment”. “Ahn?”. “É, pois é. Assumiu o Temer, que era vice”. “Tá estranho, mas isso é mais normal do que o Alckmin”, tranquiliza-se o paciente. 

GRAN FINALE

Ignorando os sinais para que parasse, o imprudente médico prossegue. “Depois do Temer, o Bolsonaro foi eleito presidente, por isso o Alckmin…”. “Ah não!”, o paciente grita e puxa todos os fios. Entra novamente em coma, para nunca mais acordar.


Esta coluna foi publicada na página 10 da edição 8433 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 28 de março de 2025.




Friday, February 21, 2025

Haikais 2025

 Haicai 2025-1

Tamborila a chuva na mesa Tamborila o dedo no capô O sapo coaxa seco na toca D.S.L., 02/02/2025

Haicai 2025-2 Chuva onírica Sol surreal O grilo escapa do sapo D.S.L. 03/02/2025

Haicai 2025-3
Miolo de pão na varanda O pardal voraz agarra-o Afugenta a borboleta D.S.L. 04/02/2025

Haicai 2025-4 A borboleta ataca Chora o bebê no carrinho O crisântemo ainda inerte D.S.L., 08/02/2025

Haicai 2025-5 Pousa o mosquito A planta carnívora fecha-se O vegano permanece firme D.S.L., 09/02/2025

Haicai 2025-6 A aranha tenta avisar “Sua alma está em mim” O jornal não espera D.S.L., 10/02/2025

Haicai 2025-7 O passarinho perdido Aninha-se no meu quarto Vira fantasma e evola-se. D.S.L., 11/02/2025

Haicai 2025-8 Rasteja o pequeno pardal O cão aproxima-se Coleira deus ex machina. D.S.L., 12/02/2025


Haicai 2025-9 Isto não é haikai Esbraveja o purista Em português arcaico D.S.L., 13/02/2024

Haicai 2025-10 Monstros não viajam Eles espreitam calados Enquanto nós vigiamos D.S.L., 16/02/2025

Haicai 2025-11 Em meio às ruínas No chão calcinado Viceja uma florzinha D.S.L., 17/02/2025

Haicai 2025-12 No quarto escuro o rumor Ultrassônico encurralado O eco do morcego dispara D.S.L. 18/02/2025

Haicai 2025-13 O coaxar dos sapos Anuncia o crepúsculo Aprende a crisálida D.S.L., 19/02/2024

Haicai 2025-14 Uma joaninha desiste Encontra outra na folha Nada acontece D.S.L., 20/02/2025

Haicai 2025-15 Massa compacta verde A floresta é uma parede Intransponível para mim

D.S.L., 21/02/2025

Haicai 2025-16
Mosca no banheiro Morta a mosca Ainda voa D.S.L., 24/02/2025

Haicai 2025-17 Cãozinho obediente Gatinha desobediente Mijam no lugar errado D.S.L., 27/02/2025

Haicai 2025-18

Grilo atrás da cortina Chão transparente de céu Céu de tecido branco D.S.L., 10/03/2025

Haicai 2025-19 Madrugada insone Sonhos lindos Gravitam nos vaga-lumes D.S.L., 11/03/2025

Haicai 2025-20 O trem etéreo ecoa Os trilhos ocres rangem As flores fogem céleres D.S.L., 12/03/2025

Haicai 2025-21

A cidade onírica espera Na curva azul impossível Os moradores suavizam-na D.S.L., 14/03/2025

Haicai 2025-22 Um etéreo avião de papel Plana sobre o velho cego Sua alma decola D.S.L., 15/03/2025

Haicai 2025-23 O pardal goza a liberdade Almejada pelo lúbrico cego Em voos de onanismo D.S.L., 17/03/2025

Haicai 2025-24 Ronco estranho no hospital Será uma lontra? Ou um resfriado? D.S.L., 18/03/2025

Haicai 2025-25 Queima a lista de remédios Cultua a obliteração Jaz sereno no orvalho D.S.L., 19/03/2025

Haicai 2025-26 A tentação da rima óbvia Consome de febre o poeta A poeta vela-o compungida D.S.L., 20/03/2025

Haicai 2025-27 Uma miríade de cores Convida à contemplação A atarefada rã não as vê D.S.L., 22/03/2025

Haicai 2025-28 O pernilongo mira o coelho Bate com tudo no vidro Vira desenho animado D.S.L., 23/03/2025

Haicai 2025-29 A têmpora urge O tempo pensa Voa incólume o pedestre D.S.L., 25/03/2025

Haicai 2025-30 O velho poeminha sacana É lido em voz alta e nítida Acadêmicos enrubescem D.S.L., 26/03/2025

Haicai 2025-31 Com medo de morrer O predador encara Vem o contra-ataque D.S.L., 29/03/2025

Haicai 2025-32 O sobrevoo rasante Do atrevido pernilongo Banho de sangue na derme D.S.L., 31/03/2025

Haicai 2025-33 O anjo voa para mim Tem sexo sim e é feminino Rosna para seus pares D.S.L., 01/04/2025

Haicai 2025-34 O tempo ribomba A cachoeira vocifera Tranquila voa a mariposa D.S.L., 03/04/2025

Haicai 2025-35 A Aurora espreguiça-se A aurora saúda-a Esse nome rarefeito D.S.L., 05/04/2025

Haicai 2025-36 Azar pende sobre a cabeça A espada de Dâmocles ri Destino foge espavorido D.S.L., 07/04/2025

Haicai 2025-37 A vida zanga-se O pântano estagnado Solta uma fétida bolha D.S.L., 09/04/2025

Haicai 2025-38 O poeta exaspera-se Pela janela o haicai escapa Voa imberbe entre pardais D.S.L., 10/04/2025