Tuesday, July 31, 2018

Seção 25

Era uma daquelas típicas frias manhãs poços-caldenses que parecem deslocadas, sob o sol alto no céu alijado de nuvens proporcionando um calor ínfimo; aquela sensação de que morava em Ganimedes ou em Io, longe demais, longe demais. Viver insulado em um grande satélite nos anos oitenta fazia com que me apegasse muito a qualquer artefato de civilizações distantes. Naquela manhã encontrei um numa calçada da rua Berilo, na parte baixa do Marçal Santos, o bairro da minha infância. Era uma fita cassete ordinária, sem a caixa, sem nome do dono ou qualquer indicação do conteúdo, mas nitidamente usada.
Peguei-a e esperei. Ninguém apareceu para reclamá-la. Era paciente, tinha tempo, estava com apenas 14 ou 15 anos. Subi a rua onde morava, a Platina, postei-me estrategicamente numa sombra e observei por muito tempo se alguém passava procurando algo no chão perto de onde estava na Berilo. Nada. Era minha, era justo. Estava curioso, coloquei-a no toca-fitas assim que pude. Tinha muita musiquinha sem graça da acid house então em voga. Era dance music bem genérica mesmo; só reconheci o Konkan, uma banda de tecnopop que lembrava um New Order anêmico.
No meio de tanta batida dançante que não dava vontade de se mexer, no entanto, reluziu um tesouro. Era um som com camadas hipnotizantes de sintetizadores, bateria eletrônica e então surgia aquele baixo gordo, potente, destacado. O vocal, distante, contido, deixa mais dúvidas ainda; tudo parece muito também o New Order, a banda que dominava o rádio à época, mas com a audição entrei no Vale da Estranheza: algo estava fora do lugar, aqueles belos backing vocals femininos não se encaixavam, a energia e a criatividade futurista se assemelhavam, mas estava diante de outro ente. Não era uma cópia, parecia um clone robótico que havia assimilado os maneirismos do original e criado personalidade própria.
Perdi a fita numa mudança, mas nunca me esqueci da longa odisseia daquela música. A batida e os acordes foram entranhados no meu DNA. Não havia informação nenhuma que pudesse recuperar ou acessar que não fosse essa memória. Haveria de ser paciente.
Em 1996, seis ou sete anos depois, o mistério começou a se desvanecer. Quando meu amigo Daniel Ferreira, que cursava Arquitetura na Unesp, pediu para morar na mesma república em que eu e meu irmão morávamos, ele me emprestou várias fitinhas. Finalmente pude ouvir Misfits, músicas da Siouxsie and the Banshees que ainda não conhecia e numa delas uma que fez meu coração bater forte e compassadamente, como um marca-passo remoto: Inspiration, do Section 25, era o nome daquela joia cibernética que havia encontrado numa calçada por onde minha infância havia caminhado antes.
Tudo fez sentido, maravilhosamente. Ainda me lembrava de uma resenha do jornalista e escritor Alex Antunes na extinta revista Bizz, na qual ele explicava que a imprensa oitentista acusava o Section 25 de ser uma mera cópia do Joy Division e do New Order, mas que não era bem assim: nas suas palavras, era antes uma banda-irmã dos dois grupos de Manchester, assumidamente influenciado. O mais incrível de tudo, para mim, é que tiveram o primeiro compacto produzido por Ian Curtis, o vocalista do Joy Division, minha banda favorita, meses antes de seu suicídio. A relação era tão umbilical que me recordo que ao ler a biografia Touching From a Distance, de Deborah Curtis, ri ao descobrir que o poeta e mito Ian Curtis ficou com um olho roxo ao se meter numa briga num show do Section 25, sendo, enfim, um humano como qualquer outro.
A fita que o Daniel gravou deixava clara a ligação: as músicas no começo soam como o Joy Division, lúgubres, etéreas, intocáveis, e vão paulatinamente tornando-se mais tecnopop e dançantes, como o New Order. O advento da internet, no entanto, fez-me descobrir que isso foi outro mito que carreguei comigo por muitos anos. Ainda que o single e as primeiras músicas do Section 25 atravessem sendas pouco iluminadas, as músicas que mais se assemelham ao Joy Division, como Beneath the Blade, estão no disco mais pop. Meu xará gravou tudo fora de ordem numa coletânea muito pessoal naquela fita; gostaria de retomar o contato com ele, possivelmente este era o intuito dele, ouvir com a sensação de uma evolução sonora que na prática não ocorreu, pois o grupo é muito confuso. Aliás, existe até hoje, com a filha dos vocalistas, já falecidos, à frente dos músicos, quase como um Demônios da Garoa do Velho Mundo, mal comparando. E Looking from a Hilltop é que foi o grande hit deles; no Youtube, descobri que Inspiration foi um sucesso nas casas noturnas góticas da noite paulistana nos anos 1980 e só lá. Algum DJ deve ter gostado dela mais do que outras e por algum motivo foi parar naquela fitinha esquecida na rua e que me inspira ternas recordações há anos.  
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Seção 25 foi publicada em 28 de julho de 2018 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Escrevi a crônica no dia anterior e o título, evidentemente, alude ao grupo Section 25.
 
Capa do single Charnel Ground/Haunted, lançado na Bélgica, em 1980, pela Factory Benelux. Foto de Jim Barker, via licença Creative Commons.



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