Thursday, January 09, 2020

A Fronteira da Chuva

Foi espetacular.
Férias. Cada dia, ao acordarmos, ao tomar café - sem café na verdade, mas sim com leite com achocolatado e muita bolachinha de chocolate – tínhamos uma folha em branco pela frente, como uma crônica ansiando para ser escrita. O que faríamos, libertos da rotina escolar? Geralmente alguém saia para rua de manhã já com uma bola, jogávamos um pouco de futebol quando aparecia mais gente, íamos conversando como seria a tarde. Cada dia, uma aventura diferente, na base do consenso. Às vezes havia algum dissenso e um pessoal ia fazer alguma outra coisa, sem ressentimentos; quase sempre, no entanto, permanecíamos juntos. Esconde-esconde, videogame, skate, fliperama, mais futebol (mas em outro lugar, em geral no Parque Municipal), assistir filme na casa de alguém, peteca. Muitas vezes, tudo isso junto e misturado. Uma rodinha jogava truco, uma dupla era derrotada, entrava no lugar da dupla perdedora da peteca. E assim íamos.
Minha rua, a Platina, no bairro Marçal Santos, era lotada de crianças e adolescentes brincando e zoando. Vinha gente de longe até, de bairros como o São Geraldo; não sei por que se concentravam ali, mas assim foi nos anos oitenta, ao menos dos meados daquela década até o início da seguinte. No começo deste século passava por lá e ainda via muitas crianças por perto se divertindo. Agora não vejo mais. O prédio onde morava, o Beta, tem atualmente um portão, não entra mais qualquer um. Há aquelas placas de casas de rede de vigilância de vizinhos em conjunto com a PM. A rua ainda é muito parecida, as fachadas são mais ou menos as mesmas, mas está vazia e quando passo olhando, devagar, saudoso, rostos desconfiados me olham de dentro dos apartamentos. Houve uma única vez que, ao subir a trilha do Cristo e descer pela estrada da Vila Cruz, há cinco anos, passei na Platina e reencontrei minhas ex-vizinhas Dalva e Terezinha em frente ao prédio. Conversamos longamente. Não há mais ninguém por lá que eu conheça, a não ser a ex-vereadora e professora Tita, que mora em frente, na casa que pertencia à família da minha amiga de infância Juliana Mariano Iwamoto, que me considera um irmão. De qualquer forma, a Tita não é do meu tempo ali.
Eu disse que foi espetacular. O verbo está no passado porque foi há mais de três décadas, vou voltar para o “meu tempo”, portanto. Como a rua de baixo, a Berilo, era mais plana, apesar de mais movimentada, costumávamos jogar futebol e esportes afins por ali – sei lá por que insistíamos em jogar eventualmente na minha rua, com aquele declive. Já não me recordo quem estava comigo naquela tarde, então vocês vão ter que acreditar na minha palavra. Talvez meu irmão, o Evandro Godói, o Paulo Augusto Rodrigues, o Márcio de Melo, todos amigões e vizinhos, parece que me lembro que eles estavam juntos, mas o cenário onírico me fez esquecer exatamente quem era a companhia. Nem sei se eles lembrariam disso também, não é porque me marcou que os impressionaria também. Enfim, ali vi algo no qual sempre pensava, quando, em viagens de carro, via tempestades cair nas paisagens distantes: será que a chuva sempre vem caindo aos poucos, geralmente com vento e obliquamente, ou às vezes uma nuvem ficava parada e ao lado dela haveria pessoas vendo o dilúvio logo adiante, protegidas pelo sol? Naquele dia, e só naquela tarde, testemunhei isto: perto da minha rua, estava o tempo firme. Na esquina seguinte, na das ruas Berilo e Ouro, chovia a cântaros. Chegávamos pertinho e voltávamos secos, admirados; aquela barragem de pingos não se mexia e assim permaneceu por uns quinze, vinte minutos, até cessar completamente. Aquela foi a única vez em que cheguei à beira da fronteira da chuva.
Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 04/01/2020, na página oito da edição 7188 do jornal. Escrevi-a no dia anterior, com saudades das férias de quando eu era garoto.

Foto que tirei com celular no dia 09/01/2020



No comments: