Friday, February 07, 2020

Esconde-esconde

No começo de janeiro li uma ótima crônica (ou ótimo conto, não sei) da escritora Letícia Novaes, que é mais conhecida no mundo da música e no qual atende pelo pseudônimo Letrux. Chamado Férias Forever, o texto logo no início menciona que ela é de uma geração que tirava férias por três meses na virada do ano. Fiquei pensando mesmo nisso na última vez em que escrevi uma crônica sobre meus tempos de férias na infância; parece que não eram só dois meses de descanso... Eu me lembro de uma vez ou outra voltar a ter aulas no finalzinho de fevereiro, mas é aquilo mesmo que ela diz: apesar de ser um pouco mais velho do que a Letícia, também sou do tempo em que as aulas voltavam em março. Hoje vejo crianças voltando às aulas no final de janeiro e acho muito estranho. É outro mundo, ainda mais competitivo.
Antes as férias eram tão estendidas e prazerosas que quando se machucava feio ainda dava tempo de aproveitá-las. Lembro bem, porque uma das brincadeiras favoritas da criançada era (e suponho que ainda seja) esconde-esconde. Numa dessas, me estrepei. Mas não foi culpa minha. É que eu tinha um colega muito atrapalhado. Já já chego lá.
O bacana do bairro da minha infância, o Marçal Santos, era que as ruas eram relativamente pouco movimentadas. Geralmente o pique era na rua Platina, onde eu morava, e valiam as adjacências das ruas de baixo e de cima, respectivamente Berilo e também Marçal Santos. Havia árvores, carros, pequenas moitas, reentrâncias nos muros e vários pequenos esconderijos. Naquela época havia, e talvez ainda haja, a “regra” de que o último a ser descoberto salvava todos os que haviam sido pegos, bastava chegar antes no pique e bater três vezes nele. Quem estava procurando não podia mais escolher quem foi pego para substituí-lo e voltava a desempenhar seu papel de, digamos assim, rastreador. Este hábito levava a desabaladas carreiras, às vezes na frente de carros em movimento, para salvar a galera. E não tinha tira-teima quando perseguidor e perseguido batiam quase ao mesmo tempo. Lembro que uma vez meu amigo Daniel loirinho dançou nessas quatro vezes seguidas. Ele ficou desanimado e foi embora para casa, choroso.
Pique esconde, diga-se de passagem, era uma brincadeira bem democrática. Participava gente de todas as idades, dos seis aos quatorze anos. Por isso todos os esconderijos foram ficando manjados. E às vezes vacilávamos também. Não me esqueço do dia em que achei que estava muito bem escondido atrás de uma árvore na rua Berilo. Meu amigo Márcio, o Baiano, gritou de longe, gargalhando: “Estou vendo seus Kicks, tá pego Daniel!”. Kick era uma marca de tênis para andar de skate que nos anos oitenta fazia uns tênis de cano alto, fechados com velcro, numas cores vermelho e verde berrantes – que aliás soltavam tanta tinta que manchavam as meias, desculpa mãe. Virei alvo fácil, camuflagem não rolava assim.
Enfim, como a brincadeira era frequente e literalmente todo mundo conhecia os esconderijos, passando a ser o atletismo e não a habilidade de se mimetizar a melhor arma, o pessoal foi ficando mais ousado. Valiam até os limites das casas das esquinas nas ruas adjacentes. Alguém teve a ideia, então, de pular o muro da casa do Coruja, um amigo nosso que morava (e ainda mora) em Santos e não vinha sempre passar férias em Poços, portanto muitas vezes sua casa na Marçal Santos ficava vazia. E nos considerávamos de casa. Então ficávamos lá, morrendo de rir, abafadamente, da cara de quem passava na rua nos procurando e não fazia ideia do novo esconderijo. E quando quem nos procurava descia para a rua Berilo, descíamos em massa para o pique e salvávamos todo mundo.
Minha desdita aconteceu por isso. Uma bela tarde, pulei lá primeiro, junto com meu amigo Evandro, o Bugu. Ah, pra quê? Meu irmão e meus amigos Paulo Augusto e Baiano acharam por bem esconder-se lá também. Não estando cientes da nossa presença, o Márcio pulou o muro e caiu com os dois pés em cima da minha cabeça. Não vi, claro. Só senti a porrada repentina; contaram-me que foi assim. Como estava me virando para o lado para falar com o Evandro, mordi a língua. É um músculo bem vascularizado, sangra abundantemente. O que acho engraçado, hoje em dia, é que não fiz uma tomografia nem nada disso, que me lembre. Nem sei se era um exame acessível à época. Meus pais levaram-me para médico e ele só cuidou da minha língua mesmo. Não passei mal e nem nada assim, apesar do banho de sangue; acho que isso colaborou.
Bem, só sei que não tomei ponto, ainda bem. Do jeito que estava dilacerada já doía demais – a maior dor que havia sentido na vida, até então. A solução foi ficar de repouso e só poder tomar sopa e líquidos por umas semanas. Foi um martírio. Tudo bem, acho que umas duas semanas depois eu já estava na rua de novo. Brincando de esconde-esconde. Sem traumas.


Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor

Este conto foi publicado originalmente no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em primeiro de fevereiro de 2020. Saiu na página nove da edição 7207. 

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