Monday, February 21, 2022

O dia em que conversei com João Gilberto Noll

Este artigo foi publicado originalmente na página nove do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 19 de fevereiro de 2022. O texto foi revisado pela Juliana Gandra. 

Casa da Cultura de Poços de Caldas (ou IMS, se quiserem), meados da primeira década deste século. O escritor gaúcho João Gilberto Noll veio fazer uma palestra. Nunca havia lido nada dele, conhecia-o apenas de ler a respeito nos cadernos culturais dos grandes jornais brasileiros. Sabia que ele era muito estimado pela crítica, foi vencedor várias vezes do prêmio Jabuti. Eu trabalhava numa rádio ridícula, com uma súcia inacreditável e chefes picaretas. Pensei comigo mesmo: pelo menos vou aproveitar o espaço para falar de algo bom e vou lá entrevistá-lo. Mesmo sem ganhar hora-extra e nem nada disso; eu sequer combinava nada com a chefia. Simplesmente fazia e foda-se. Depois eu matava um pouco de serviço para compensar. Na verdade, fiz isso várias vezes, em todas as ocasiões em que algum escritor descia do Olimpo das capitais e vinha visitar o equipamento cultural da provinciana Poços. A entrevista com Noll, no entanto, marcou-me mais do que outras nessas ocasiões. Ele era um erudito e um gentleman. Mencionei na entrevista que me lembrava muito fortemente de uma reportagem sobre ele n’O Globo, na qual era relatado que ele estava vivendo em completo desalento. Isso havia sido em 1991 ou 1992, eu era adolescente e essa imagem de um escritor brasileiro vivendo à beira da miséria e do ostracismo, mesmo que premiado, me foi muito reveladora e marcante. Noll me disse que também se lembrava vivamente da matéria, mas me disse isso havia sido muito tempo atrás e que sua situação melhorara. Dava para imaginar, ele parecia muito elegante no terno em que usava. Talvez não fosse um terno bem cortado, mas como não é um assunto do qual entendo e ele se portava de modo muito cavalheiresco e afável, a imagem que retive foi a de um homem elegante. Eu perdi a fita com essa entrevista; a rádio na qual trabalhava, como já disse, era (e é) uma porcaria, portanto resta apenas minha memória deste encontro e conversa. E o que mais me causou espécie foi a palestra dele. Eu não era o único que não o havia lido ali; a maioria também não. Talvez ninguém. Alguma escola levou muitos alunos adolescentes para assistirem à palestra. É óbvio que isso redundou num desastre. Noll falava com uma voz muito fina, impressionantemente aguda, muito mais do que quando ele conversou comigo. Talvez estivesse muito nervoso por falar em público, embora parecesse muito sereno ao gravar a entrevista. Ele abria a boca para dizer qualquer coisa e o público, desinteressado e naturalmente cruel, devido à faixa etária e ao espírito de manada, mal conseguia disfarçar os risinhos de mofa. Alguns deixavam escapar uma ou outra gargalhada mais alta. E Noll ali na mesa, sério, eventualmente lançava alguns olhares evidentemente preocupados para o público, mas seguia inabalável falando sobre literatura e seu trabalho. Ele faleceu em 2017 e, quando soube da notícia, lembrei-me imediatamente da sua recusa digna a servir de bufão para o deleite de quem o escarnecia.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, revisor e professor


Capa da edição gringa do romance Harmada, de João Gilberto Noll. 


1 comment:

Jornalismo Cidadão Digital said...

É tão legal lembrar que existe a palavra "gentleman". Me faz ter esperanças de que ainda existam outros por aí.