Monday, September 05, 2022

Leituras que levam à alteridade

Esta crônica foi publicada na página sete da edição 7831 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Em relação à publicação no jornal, só corrigi dois pequenos erros de digitação (sobrou uma palavra numa frase, em outra faltou), não fazendo uma revisão aprofundada.  

Há livros que conectam os leitores vorazes de Literatura aos leitores eventuais. Notei isso com o passar do tempo: não são exatamente clássicos, obras que fazem parte do cânone ocidental, nem livros de leitura obrigatória nas escolas e para vestibulares/Enem, ou mesmo necessariamente best-sellers, mas sim livros que acabam calando fundo no inconsciente coletivo. Podem ser tidos como subliteratura por grande parte da crítica, mas não necessariamente o são. O Pequeno Príncipe, O Menino do Dedo Verde, Meu Pé de Laranja Lima encaixam-se nisso: li por mera curiosidade, mas ao escrever a respeito, notei que muita gente que parece não se interessar por livros comenta-os comigo – e muitas vezes fazem reflexões aprofundadas. Em comum, foram pensados para o público infanto-juvenil, ou seja, são obras de formação. O Profeta, de Gibran Khalil Gibran, não foi pensado para um público jovem (que eu saiba), mas talvez também seja uma obra para formar caráter, porém, através da fé. Embora não seja meu tipo de literatura, foi uma leitura prazerosa. Peguei para ler uma edição de 1976, traduzida por Mansour Challita, que também fez um dos prefácios, além do Austregésilo de Athayde, escritor do qual tenho vaga lembrança de ver na TV quando eu era criança, pois ele era presidente da Academia Brasileira de Letras. Comecei pelo longo posfácio, na verdade um catálogo da editora de Challita, no qual ele, meio cabotino, fala de seus livros e de autores do Oriente Médio; depois li os prefácios, algo que não costumo fazer antes de ler a obra. Numa noite mergulhei na trama em si e, como Challita afirma na orelha, levou apenas duas horas de leitura. É a história de um sábio que se despede de uma cidade, Orphalese, onde passou muitos anos, discursando para a população. Parece-me, mal comparando, com o já citado O Pequeno Príncipe, mas mais voltado para adultos. O Profeta, aliás, precede o clássico de Saint-Exupéry. É mais profundo em suas reflexões sobre a vida, em especial sobre o papel de pais e mães e numa bela alusão implícita, no meu entender, ao sexo. Já conhecia Gibran de poemas que li no jornal do Instituto Cultural Cia Bella de Artes, na primeira década deste século, e é impossível não notar que ele faz prosa poética n’O Profeta. É um livro de proselitismo religioso, não tenho dúvidas, mas a qualidade literária permite ser lido por qualquer pessoa, inclusive ateus e agnósticos. Peca pelo esquematismo das perguntas da população da cidade a Al-Mustafa, o profeta do título; minha impressão é que Gibran quis de certa forma emular a Bíblia e, em especial, a vida de Jesus (o que fica claro pela leitura do posfácio), simplificando seus ensinamentos para que mais gente os compreenda. Parece-me, diga-se de passagem, que há paralelos entre a desdita de Al-Mustafa não só com a de Jesus Cristo, como também com a de Sócrates. Há uma personagem feminina, a vidente Almitra, a única do livro que também ganha um nome, e é seu ponto de vista que dá o tom do fim, destacando o sagrado feminino. Vejo edições recentes da obra por aí, creio que ainda é algo que se infiltra em muitas consciências.

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor


O jovem Khalil Gibran fotografado por Fred Holland Day. Foto de domínio público.

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