Monday, October 17, 2022

Faca de Três Gumes

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7859 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Em relação à publicação original no jornal, revisei o texto e corrigi dois pequenos erros de digitação.

Como disse na crônica passada, Fernando Sabino faria 99 anos nesta semana se não tivesse morrido um dia antes do seu aniversário de 81 anos. Como é o autor que mais li, ainda que talvez eu conheça mais profundamente a obra de outros escritores (Raduan Nassar, por exemplo, escreveu pouquíssimos livros), e como as inúmeras histórias dele são legais demais, não resisto à tentação de falar sobre ele mais uma vez. E aproveitando o ensejo, abordar a dificuldade de se estabelecer um cânone pessoal.  Afinal, semana passada afirmei que O Encontro Marcado é possivelmente é o melhor livro de Sabino. O fato, no entanto, é que talvez A Faca de Dois Gumes seja sua obra-prima. O livro foi concebido por Sabino como uma trilogia de novelas de mistério. A primeira história, O Bom Ladrão, é uma espécie de releitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis, que para meu gosto supera o original, pois apraz-me mais a linguagem seca e a fina ironia de Sabino, muito melhor do que os rococós machadianos – embora eu reconheça a inventividade do original, com certeza o mais criativo romance da história da literatura brasileira e uma leitura que me desconcertou, como acontece com todos que o leem com a devida atenção. Aliás, Sabino gostava tanto desse clássico machadiano que até o reescreveu em primeira pessoa. Apenas comecei a ler tal atrevimento umas duas semanas atrás na casa de uma amiga; chama-se Amor de Capitu. Nem precisa dizer que estou adorando, ainda que seja uma ousadia que tenha provocado narizes torcidos; o crítico literário Alfredo Monte, falecido precocemente em 2018, não se furtou a detonar implacavelmente a recriação de Sabino – que, sim, parece feita de encomenda para vestibulandos. De qualquer forma, isso é uma digressão na qual é melhor eu não me alongar tanto. Voltando à Faca de Dois Gumes, a segunda novela é Martini Seco, que eu já havia lido como um livro solo no carnaval de 2015, na casa de outra amiga, em Brasópolis. Não sabia que compunha este volume e ri mais ainda da trama rocambolesca ao relê-la, pois traz o humor do autor com o qual estou acostumado. A última novela é a que dá nome ao livro, aliás lançado originalmente em 1985; lá pelos idos de 1992/93 assisti ao filme baseado nesta história, o qual foi dirigido por Murilo Salles e estrelado por Paulo José, José Lewgoy e Marieta Severo em atuações marcantes. De longe é a melhor parte do livro e já sabia que era fortíssima devido à adaptação cinematográfica. A novela (ou conto, talvez) de Sabino diverge muito do roteiro da película a partir de certo ponto, mais ou menos no meio da trama, e é muito superior, embora o filme seja excelente. É literatura policial na sua melhor forma, mas mais requintada, extremamente criativa e com linguagem trabalhada para ser a mais concisa possível, dando força à narrativa a ponto de eu não conseguir parar de ler; fui sequestrado pela história. É aquilo: reafirmo que O Grande Mentecapto é o meu livro do coração, mas às vezes acho que esta/e novela/conto isolada/o é o ápice da literatura de Sabino.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor


Fernando Sabino. Foto de domínio público. 


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