Tuesday, January 09, 2018

A Cura

Certa feita caí doente a ponto de preocupar muito minha mãe e meu pai, já calejados com crianças enfermas, o que é bem normal. Tive uma infecção das vias aéreas superiores que os obrigou comprar um aparelho para inalação. Tomados os remédios receitados pelo pediatra, fiquei ótimo, mas houve um efeito colateral inesquecível. Tive alucinações muito vívidas.
Foi talvez a experiência mais psicodélica da minha vida e curiosamente aconteceu com drogas legais e quando eu era criança. Após a inalação, deitei-me na cama dos meus pais. Fiquei de boa por um tempinho, até que vi um clone meu emergir da minha barriga. Foi um nascimento sem sangue, simplesmente um gêmeo originou-se de mim e ergueu-se sobre meu corpo. Só que não parou aí. Outro clone saiu da barriga dele, simplesmente emergiu também. Antes que me desse conta de dizer algo, cópias exatas de mim apareceram por todo o quarto, simplesmente brotaram no ar. Estavam todos com a mesma roupa que eu estava usando, um shorts e uma camiseta cinza do Mickey. Senti que todo o oxigênio estava sendo sugado do cômodo e levantei-me desesperadamente, empurrando meus outros eus. Eles sumiram assim que me movi; enquanto recuperava o fôlego achei que tinha sonhado.
Aquietei-me e deitei-me novamente. Estava muito mole para chamar por alguém de casa. Não deu um minuto e apareceu mais um clone. Mas dessa vez era uma miniatura do tamanho de um boneco do Falcon, popular nos anos oitenta, andando por cima da cômoda. Mas era eu mesmo, com a mesma roupa, numa versão liliputiana. Este pequeno clone era agressivo. Ficou me xingando, o que estava de bom tamanho, perdoem-me o trocadilho infame, pois ao menos era um só. Mas ele foi me irritando tanto me chamando de babaca e berrando outros impropérios gratuitamente que quis dar um jeito nele. Fui pegá-lo e bati a testa na quina da móvel. Ele me encarou um pouco e sumiu. Nessa hora tive certeza que nada daquilo era sonho e que foi tudo alucinação.
Creio que se isso acontecesse hoje em dia ficaria encanado. Mas como era criança, achei tudo ultra divertido. Tirando o susto da falta de ar e a dor momentânea de ter batido a cabeça, findas as duas alucinações, não foi nada muito aterrorizante. Na verdade, visualmente foi fascinante. Virei pro lado e dormi. Nunca mais tive algo assim. Nem comentei nada para meus pais no dia seguinte, já que não me preocupei nem um pouco. Já contei essa história para alguns amigos e agora me dou conta de que deveria ter contado para os adultos o que se passou comigo, afinal há nas bulas os efeitos adversos que advém desses relatos. Mas nem me lembro o nome dos remédios mais, não faço a menor ideia. Deve ser um efeito colateral raríssimo. Tudo bem, boa viagem.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor
Capa do disco The Top, lançado em 1984 pelo The Cure.
Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em seis de janeiro de 2018; era inédita e esta versão é idêntica, não a reescrevi ou precisei corrigi-la ao revisá-la. Embora não mencione e não seja inspirada na banda, o título é uma homenagem ao The Cure.

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