Wednesday, April 20, 2022

Indesculpável

Este conto foi publicado na página nove da edição 7737 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 14 de abril de 2022. Apenas traduzi e adaptei para a realidade brasileira um conto que escrevi originalmente em inglês, tendo em mente os rednecks racistas do sul dos EUA, em 30 de outubro de 2007, embora só o tenha publicado no meu blog de textos em inglês em 24 de janeiro de 2008. Eu mesmo revisei o texto, cujo teor sarcástico foi muito influenciado por letras do Jello Biafra, do Dead Kennedys, e um pouco pelo Bukowski. 

Pouco antes da devolução de seu dinheiro, Jerry Garcia estava pensando em suicídio. Ele nunca teve nenhuma chance, ele não conseguia parar de pensar nisso. Um perfeito perdedor. Os pais eram doidivanas. Eles gastaram tudo em drogas e álcool. Mas eles também eram hippies, então o garoto cresceu em uma atmosfera de amor e foi batizado com o nome do líder do Grateful Dead. Eles apoiaram muitos de seus desejos quando ele era um pirralho. Quando a loja de bicicletas faliu, os dois fugiram e não deram a mínima para os credores. Afinal, o sonho não acabou. Ele não podia culpá-los. Eles não reagiram bem quando ele se rebelou na esteira dos hormônios adolescente, ironicamente desejando ser um cara comum e disciplinado, e negaram todas as suas acusações. A mãe comprou tudo o que ele desejava. O pai fez tudo o que Jerry queria. O resto do dinheiro foi investido em bebida, maconha e ácido, mas eles nunca se importaram com posses. Hippies, no verdadeiro sentido da palavra. Quando sumiram, tudo ficou para Jerry, que não podia ser cobrado no nome deles. Felizmente, a comarca já não tinha regras e costumes medievais naquela época, assim como uma minoria de lugares naquele interiorzão esquecido. O juiz estipulou um novo lar para o garoto abandonado. Ele foi adotado com seu Nintendo, brinquedos, bicicleta, raiva e medos. Na adolescência, ele só sabia ler e alguma coisa sobre matemática graças à mãe, mas nunca foi à escola, apenas vagueou pelo bairro e se divertiu muito. Era o final dos anos oitenta. Os anos noventa foram um pesadelo. Seus novos “pais” o colocaram na escola. Jerry nunca foi um saco de pancadas, apesar de sua falta de sociabilidade, por causa de sua condição física. Mas, em uma cidade pequena, ele teve que estudar com crianças pequenas, desde o início. Mesmo que isso fosse mais humilhante ainda, ele reabriu a bicicletaria e jurou honrar todas as dívidas. As pessoas do entorno começaram a apadrinhá-lo, por causa de seus esforços. Uma criança com senso de dever. Ou um tolo que pensa que o sistema feudal ainda é legal. Depende do ponto de vista. Quando ele acabou de se tornar independente, depois de anos de lucro zero, apenas pagando as dívidas e tendo o básico para se alimentar, o banco fez uma bagunça com sua conta. Um erro de sistema, eles alegaram. Bem, tudo bem, mas eles não corrigiram o erro, e até, sutilmente, tentaram culpar Jerry pela desistência. Ele quase desistiu e fechou as portas. Então, em uma espécie de milagre, ele viu uma carta debaixo de seus cobertores. Sua mãe – sua mãe biológica – lhe enviou uma carta. Rosa, que o adotara, não consegue disfarçar o ciúme, mas colocou a carta na cama dele escrupulosamente. Maria estava morando na estrada. Ela apenas relata banalidades que soam e cheiram como a chegada de um zéfiro açucarado em uma fábrica de suor. Essa boa sensação durou algum tempo. Logo depois, ele se tornou amargo e mais irritado do que nunca. Seu pai apenas diz um oi. Eles viajam pelo país fazendo biscates e viraram as costas por anos. Eles que se fodam. Ele voltou a trabalhar e trabalhou duro. O banco, finalmente, liberou seu dinheiro com um bônus, para evitar problemas legais. Hoje Jerry é um exemplo de cidadão de bem. Seus ray-bans e bigode tornaram-se o rosto do terror para os hippies da cidade. Como PM, ganhou todo o respeito que sempre julgou merecer.

Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor


Mural em homenagem a Jerry Garcia, do Grateful Dead, pintado por Claire Bain em 1999 no The Warfield Theater, em San Francisco, Califórnia. Foto tirada por Franco Folini em 15 de agosto de 2012, postei aqui via licença Creative Commons. 





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