Esta crônica foi publicada na página 9 da edição 7963 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 18 de março de 2023.
Tenho
todos os gibis dos Piratas do Tietê, marcou minha infância e adolescência.
Depois que a revista parou de ser publicada, continuei a ler a tirinha, de
forma intermitente, na Folha de S. Paulo. No entanto, foi apenas no fim de 2022
que li um livro que compila essas tiras pós-publicação das revistas – que por
sua vez também compilavam as tirinhas, além de apresentar HQs (então) inéditas.
Depois de escrever, na semana passada, sobre a inadequação aos dias de hoje de
uma piada contada por Paulo Caruso numa palestra que testemunhei, creio que é o
momento certo para refletir um pouco mais sobre a leitura desse primeiro
livrinho de bolso dos piratas, que tem um subtítulo apropriado: Escória em
Quadrinhos.
O
humor é algo engraçado, não só no bom sentido: parece que nunca envelhece bem.
Há tiras aqui que hoje fariam Laerte ser canceladíssima. Alguém mais novo, com
uma boa carga de informação sobre preconceitos, ou algum detrator facho da
quadrinista que lesse esse livrinho com certeza destacariam quadrinhos que
atualmente são impublicáveis. E justo da Laerte, hein? Não dava para imaginar,
pois ela sempre foi mais militante, sofisticada e sutil do que seus pares.
A
maioria eu nunca tinha lido, umas poucas eu me lembro de ver em outros
livros/revistas/no jornal. De qualquer forma, creio que na época não me
chamariam a atenção: a verdade é que preconceitos em geral eram naturalizados.
E, também, eu tinha outra visão: para mim era óbvio que eram apenas piadas e
que não se traduziam em ofensas no dia a dia. Tanto que, em meados da primeira
década desse século, fiquei chocado com a resposta de Laerte a uma carta de uma
associação de pais de autistas publicada pela Folha de S. Paulo, que o acusava
(à época, ela usava o gênero masculino) de reforçar estereótipos e preconceitos
contra pessoas com autismo numa história em quadrinhos: ela pediu desculpas à associação e
aos ofendidos, reconhecendo que o humor trabalha, muitas vezes, com
estereótipos preconceituosos. Eu pensei "que mané pedido de desculpas, que
absurdo", pois havia lido a tirinha com a piada mencionando autistas (não
me recordo mais dela) e não tinha achado nada de errado e que não reforçava
nada preconceituoso.
Hoje,
é claro, entendo melhor o poder desses discursos estigmatizantes e
como eles se infiltram nas consciências e no cotidiano. Então o choque não é só
com essas tiras, obviamente de meados e fins dos anos 1990 (dá para notar,
pelas referências), mas também comigo mesmo, pois, mesmo se as tivesse lido
quando publicadas, os preconceitos explícitos passariam batido – há até mesmo o
uso do termo “pau de arara” para se referir a nordestinos, algo que, justo
neste momento político, deve provocar enorme constrangimento à autora. Por
essas e outras, creio que tudo isso deve ter levado à atual fase filosófica da
Laerte, que talvez tenha refletido sobre aquela carta, pois notei que pouco depois,
aos poucos, a tônica de seu trabalho foi mudando.
Compreendo
totalmente a trajetória artística dela, que fique óbvio que não defendo
cancelamentos tendo em vista comportamentos pretéritos já superados, e a
mudança de postura é notável. O mundo não ficou mais chato, ao contrário do que
prega o clichê preguiçoso dos reacionários, muito pelo contrário: ele força
humoristas a saírem dos lugares-comuns rasteiros para serem engraçados de
verdade.
Um
dia espero ler o segundo volume dessa compilação, mas já ciente de que o
contexto não é o mesmo do qual me recordava – de que Laerte seria diferente de
Ziraldo, do Verissimo, de Millôr e dos outros gênios do humor do mesmo naipe no
quesito teste do tempo. Ressalte-se também que não creio, claro, que o livro
deveria deixar de ser editado como está, pois é o retrato histórico de uma época, mas,
para piorar, li uma edição de 2008 e creio que é republicação de uma edição
mais antiga. Olhando atentamente para a arte, os pixels são evidentes, pois são
digitalizações de baixa qualidade.
Todas
essas reflexões são necessárias, mas é aquilo: as piadas que envelheceram bem
levaram-me, boa parte delas, às gargalhadas. E dá-lhe violência gratuita
sanguinária e rum, afinal são os Piratas do Tietê.
Daniel
Souza Luz é revisor, escritor e jornalista
P.S.: fiz quatro pequenas alterações no texto em relação à publicação no jornal, todas para eliminar palavras repetidos ou para acrescentar outras que deixassem mais claro o que eu queria dizer; nenhuma das alterações altera o sentido do texto original, que, por sua vez, é um refinamento das impressões que escrevi no Good Reads pouco depois da leitura do livro.
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