Monday, July 11, 2022

Anacronismos, italianismos e racismos

Este ensaio foi publicado na página sete da edição 7791 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em nove de julho de 2022. Em relação ao texto publicado no jornal, apenas aperfeiçoei a redação da última frase. 

Neste ano em que se comemorou, meses atrás, o centenário da Semana Moderna de 1922, os escritores modernistas, mesmo de segunda geração, voltam à tona. É o caso de Antônio de Alcântara Machado, mais conhecido como o autor de Brás, Bexiga e Barra Funda. O que me fez querer ler este livro, no entanto, foi uma crônica do Ivan Angelo que li numa Vejinha (Veja SP) em 2018, enquanto aguardava uma consulta médica do meu pai em Sampa, e na qual Angelo elogiava muito a obra. Como já havia lido o conto Gaetaninho, que é ótimo, numa das coletâneas Para Gostar de Ler, é um livro que antes mesmo de ler já me trazia ótimas memórias. E que decepção. Não podia deixar de lê-lo neste ano, então peguei uma edição destinada para vestibulandos do final do século passado na biblioteca da Caldense. Começa mal, os primeiros contos são enfadonhos; nem as invencionices modernistas na linguagem os salvam. Depois melhora, mas ao mesmo tempo que as habilidades de narrador de Alcântara Machado se destacam, os preconceitos dele se avultam. E não é só o elitismo, mas como bem nota a professora Cely Arena nos textos complementares, há racismo. Ela ainda tem dúvidas se é do narrador ou do autor, mas para mim está bem claro que Alcântara Machado era tão racista que fazia Monteiro Lobato parecer um destacado abolicionista. Todos os personagens negros são muito mais caricaturais do que os imigrantes italianos que ele já retrata com um viés pitoresco – Parque Industrial, da Pagu, é também uma obra modernista e faz um retrato muito mais interessante do Brás e dos seus trabalhadores, até porque é marcado pela alteridade. Além disso, características negativas são pespegadas aos personagens negros sem nenhum pejo. Qual a razão para essa falta de escrúpulos a não ser racismo? E não vou nem entrar no mérito de como ele se refere aos indígenas. Não sabia que essa edição também trazia junto o livro Laranja da China (possivelmente porque desde os anos 1970 as duas obras são editadas juntas sob o título Novelas Paulistanas); é muito superior, embora muito menos famoso, e salva a leitura desse volume escolar, pois nele Alcântara Machado já era um narrador mais seguro e usava recursos estilísticos características do modernismo com mais parcimônia e criatividade. Infelizmente, os estereótipos racistas continuaram presentes. Como os seres humanos são complexos e contraditórios, há matizes que também revelam qualidades à frente do seu tempo: um conto como Carmela, que a professora Arena entende que retrata a falta de mobilidade social da mulher imigrante, também pode ser entendido como um elogio à liberdade sexual feminina. No entanto, apesar da linguagem ser moderna e fluída, muito influenciada pelo Oswald de Andrade, o livro é pra lá de anacrônico, mesmo para a época em que foi escrito, menos de três décadas após a abolição da escravatura. Isso dá uma pista de como o racismo estrutural deveria ser naturalizado na elite política a qual Alcântara Machado pertencia. Essa edição é para um vestibular de 1999; se àquela época, no posfácio, já se criticava o racismo e o elitismo do autor, hoje creio que a grita seria tão forte que a obra seria retirada da lista de leituras obrigatórias. Não seria imerecido, embora seja um autor que precise ser lido, tal como Lobato, até para se entender os mecanismos dos preconceitos que insinuam-se em narrativas.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, revisor e professor

Antônio de Alcântara Machado.

  

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