Monday, July 04, 2022

Discos Que F... Muitas Vidas

Este ensaio pessoal foi publicado na página 7 da edição 7786 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Em relação à publicação no jornal, tive que fazer uma correção: troquei as bolas na questão de quem cantava uma canção numa resenha do JAL sobre o Velvet Underground. Ou seja, insisti no que era certo ao comentar um erro dele para ilustrar o meu. Total Inception. 

Fanzines foram um alicerce do underground nos anos 1980 e 1990. Numa época em que a informação era escassa, eram um meio de circulação de ideias e principalmente de divulgação de cenas musicais em publicações xerocadas, amadoras, geralmente com colagens – uma herança do dadaísmo –, mas que eventualmente tinham textos mais bem elaborados e profundos do que revistas tradicionais. Li inúmeros, fiz quatro (dos quais somente dois tiveram mais de uma edição), colaborei com vários e vi desde a valorização do meio pela mídia tradicional até a decadência com a chegada da internet. No fim dos anos 1990 eles até coexistiram com sites simples feitos por fanzineiros no finado Geocities, mas neste século toda essa fecunda cena pereceu aos poucos. Foi quando tive a ideia de fazer um fanzine literário, nos idos de 2003, com contos em vez de resenhas de shows e discos, sem imaginar que seria assim que zines renasceriam: como suporte em papel para novos escritores que não têm condições de bancar seus próprios livros em gráficas. Mas é outra era, em que são vendidos na rua e em saraus, e não há mais um intenso escambo dessas publicações pelo correio. Também não há mais ligação com o punk rock, que ressuscitou e reconfigurou o formato, inaugurado na década de 1930 por fãs de ficção científica, em 1977. Por isso mesmo, foi uma honra ter sido convidado para colaborar com a segunda edição do Discos que F.. Muitas Vidas, que tem o título assim mesmo, autocensurado, numa brincadeira do editor Renato Lauris Jr. Afinal, esse é o único meio em que realmente não há censura. Nos anos 1990, aliás, grassavam vários quebra-paus nas discussões em textos e entrevistas. A data desse número dois é de um ano atrás, quando Lauris me pediu um artigo, mas ele só foi editado em papel recentemente. Ótimo, imediatismo é coisa de redes sociais. O disco que ferrou minha mente não poderia ser outro: o Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols. Tanto que cometi um erro imperdoável no meu artigo: afirmei que C’mon Everybody era cantada pelo guitarrista Steve Jones e na verdade foi pelo Sid Vicious. Agora entendo por que o grande jornalista José Augusto Lemos cometeu uma gafe quando escreveu que a Nico cantava uma música cujo vocal foi feito pelo Lou Reed no primeiro disco do Velvet Underground. Tudo bem, estou em boa companhia, um dia reedito esse artigo dos Pistols e o corrijo. O zine traz muitos outros discos clássicos do punk, pós punk, hardcore e grindcore; todos os textos são deliciosos de ser lidos por quem cresceu colecionando vinis, fitas e CDs (tenho quase todos os discos comentados nessa edição). Não há resenhas propriamente, todos os textos são de memórias. O título diz tudo: discos, nas eras punk, pós punk e grunge/metal, alteravam a percepção de mundo do ouvinte, o modo como agem e suas relações pessoais. Ora, não é por acaso que discutia com chefes e que apenas dois deles sejam meus amigos em redes sociais, afinal odeio autoritarismo, nem é à toa que detesto fachos. Isso, claro, não é algo restrito à minha geração, com os hippies também foi assim. Em cada memória desse zine é possível visualizar as cenas, quem é das antigas sabe: um amigo aparece com uma fitinha cassete misteriosa, um chegado está ouvindo um disco fora de série na vitrolinha da avó, lê-se sobre uma banda numa revista e se compra um CD no escuro. E nada mais é como era antes. Em particular, o artigo do anarcopsicólogo Luiz Henrique sobre uma das obras-primas do Napalm Death, um ícone do barulho extremo, traz uma lembrança importante: feminismo, direitos dos animais, luta contra homofobia, quase todas as pautas de hoje, tudo isso já era discutido à exaustão nas letras e nos fanzines. Não tinha cancelamento na época, o termo era boicote e isso, como já disse, fazia como que o pau quebrasse – às vezes, de verdade, não era virtual. Hoje o rock é, majoritariamente, um lixo conservador. Claro que ainda há bolsões de resistência e criatividade, mas voltaram para o underground. Antes, se eu via alguém com camiseta de banda da qual gosto, ia puxar papo. Hoje prefiro passar longe. As novas gerações que gostam de divas LGBTQIA+ e rap nacional são mais relevantes agora e escandalizam mais os reacionários. Foram os fãs da Anitta que ferraram os sertanojos bolsonaristas desperdiçadores de dinheiro público, não foram os ouvintes do Slayer (aliás, outra banda associada à rebeldia que terminou mais velhusca do que vovôs fascistas). Roqueiros não incomodam esses pilantras, que incorporaram as tatuagens e poses. E que fique claro que hoje aprecio música caipira de fato, inclusive este fanzine começa com uma citação do Zé Rodrix e do Tavito. De qualquer forma, é muito bom notar que minha geração venceu e que passamos o bastão. Quem quiser manter a chama viva, pode escrever para o Lauris e pedir cópias dessa edição e da anterior: revsobrevidas@gmail.com     

Daniel Souza Luz é jornalista, revisor, escritor e professor



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