Monday, July 18, 2022

As sendas erradas pelas quais Hemingway caminhou

Este ensaio foi publicado na página 7 da edição 7796 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 16 de julho de 2022. Trata-se de uma reflexão que fiz originalmente em 2006 e que decidi atualizar, ampliando muito o texto, além de aperfeiçoá-lo.    

Uma questão que tem me interessado, ao tomar contato com obras de décadas atrás que não têm reedições acrescidas de fortunas críticas e novos posfácios (mas deveriam, até porque há efemérides que as favoreceriam), é refletir sobre como as novas gerações de leitores as recepcionariam, no caso de uma revalorização dos autores. Expressões e passagens que passavam despercebidas outrora hoje causam certo estranhamento, isso quando não se descobre que são explicitamente preconceituosas. Os cancelamentos são motivados, muitas vezes, por causas justas, tisnando a reputação de autores. Não é algo que deva ser superdimensionado, no entanto. Há escritores que fazem da má reputação sua fama, como é o caso de Charles Bukowski, que a explicitava em seus contos, muitos dos quais autobiográficos. Não há cancelamento que o atinja ou a Céline, um colaboracionista dos nazistas na Segunda Guerra que jamais li, mas que continua sendo reputado como um dos titãs da literatura francesa, apesar de seu envolvimento com os nazis não ser segredo. E, na verdade, não há novidade nesta questão do cancelamento, a não ser o termo. De tempos em tempos, mesmo depois de mortos, escritores, ao menos os que foram tidos como bússolas morais do seu tempo, têm o caráter posto à prova.  Em 2006, por exemplo, li uma reportagem interessante, assinada por Kátia Mello, na revista IstoÉ: um jornalista alemão reuniu na correspondência de Ernest Hemingway evidências de que o escritor matou 122 soldados do Eixo durante a 2ª Guerra Mundial, época em que se alistou no exército dos Estados Unidos. A reportagem abre com uma consideração de que o fato abala um mito da esquerda. Para mim, isto não deveria surpreender ninguém ou abalar coisa alguma. Ele ajudou os lendários documentaristas Joris Ivens e Roman Karmen a registrar os horrores da Guerra Civil Espanhola; o documentário foi bancado por intelectuais norte-americanos de esquerda que estavam preocupados com Franco e chegou a ser visto pelo presidente Roosevelt. No entanto, quem leu atentamente Adeus às Armas sabe perfeitamente o quanto Hemingway é frio em relação à guerra, embora o livro permita vislumbrar também uma leitura pacifista. A prosa dele é quase insensível, seca e sem grandes insights, exatamente o inverso da escrita de Henry Miller, para citar apenas outro escritor norte-americano que perambulou pela Europa naquela época de efervescência literária. Miller vagabundava em Paris enquanto Hemingway lutava contra fascistas na Espanha, e isso, claro, reflete-se na forma como escrevem. Embora o vazio das mortes sem sentido seja o momento no qual Hemingway concentre a força da sua escrita nesta obra, em que justamente a frieza produz os momentos de mais alta densidade literária, é patente que ele as considera inelutáveis em uma guerra. Adeus Às Armas também evidencia que ele possuía uma tendência belicista atávica. Quando o narrador, seu alter ego, mata um aliado, o faz sem culpa e sequer tece grandes considerações posteriores a respeito. No entanto, se for verdade os fatos levantados na correspondência, não deixa de ser lamentável que Hemingway tenha matado um soldado alemão de 17 anos que tentava escapar do confinamento. A reportagem cita a atração por combates que Hemingway demonstrou em vida. Não sei o quanto isso o angustiava ou não, se os assassinatos a sangue frio que ele teria cometido na prisão – os inimigos estavam cativos, portanto fora de combate – influenciaram seu suicídio em julho de 1961, mas creio que um passado tão violento não deixe de ser um fator determinante. Bom ou mau caráter (consta que ele também traía a esposa, a quem dedicava os livros), ele continua a ser um dos grandes autores do século passado.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, revisor e professor

Ernest Hemingway em seu barco, 1950. Foto de domínio público, sem atribuição do autor.


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